15 fevereiro 2013

Anúncio da Linha Rara: mau serviço público



«Sabe o que é uma doença rara? Sabe que pode ter uma sem saber? Não se conforme! Informe-se! O 707 100 200 é uma linha profissional e especializada que o aconselha e esclarece: Quais os médicos a consultar? Que apoios sociais existem? E onde se deve dirigir?
Linha Rara: 707 100 200
Custo de chamada local.»

Nestes exactos termos reza um anúncio que vem sendo emitido pelas Antenas 1 e 2 (desconheço se também pelos demais canais da RDP). Quando o ouvi, pela primeira vez, interroguei-me: «Sabendo-se que as pessoas têm uma tendência quase natural para a hipocondria, anda agora o Ministério da Saúde a levantar fantasmas nas cabecinhas de portadores imaginários de doenças raras? Parece-me muito pouco razoável e bastante questionável, à luz da deontologia médica, o rastreio de eventuais doenças (raras ou não), ou o mero aconselhamento médico que seja, por telefone, independentemente da idoneidade profissional da pessoa que atende as chamadas.» "Quais os médicos a consultar?", diz-se no anúncio. Como assim? Com que fundamento clínico se vai indicar às pessoas que ligam para aquele número médicos especialistas em doenças raras sem se saber se elas sofrem efectivamente de uma dessas enfermidades? As palavras do doente dizendo que lhe dói isto ou aquilo são bastantes para se chegar à conclusão de que se trata de uma doença rara? E qual a doença rara especificamente, se há uma miríade delas? E havendo vários médicos especialistas numa determinada doença, com que base ética se encaminha o doente para Fulano, Sicrano ou Beltrano? E é acaso aceitável que uma "consulta" por telefone substitua o médico de família, esse sim a quem cabe atender o paciente e, caso se confirme ser portador de uma doença não vulgar, depois de feitos os adequados exames de diagnóstico, encaminhá-lo para especialistas? Tudo muito estranho e esquisito...
Mas o que me deixou ainda mais apreensivo foi a indicação de um número de telefone iniciado por 707 que, ao contrário do que é dito no anúncio, corresponde a uma tarifa de valor acrescentado e não a custo de chamada local (se assim fosse o número começaria por 808). «Com que então o Ministério da Saúde a convidar a população a ligar para um número de valor acrescentado para assim obter receitas extraordinárias? Muito pouco ético e deveras censurável vindo da parte do Estado», disse para os meus botões. «Este anúncio cheira-me a negócio privado...»
Tratei de averiguar e fiquei então a saber que a Linha Rara (http://www.linharara.pt/) não pertence ao Ministério da Saúde, mas a uma entidade privada, de nome Raríssimas – Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras (http://www.rarissimas.pt/). Não me custa nada admitir que o dinheiro que aquela associação recebe do Estado e dos seus associados não chegue para desenvolver cabalmente a sua actividade, decerto muito louvável e meritória (isso está fora de questão) e, nessa conformidade, tem toda a legitimidade para angariar fundos junto da população. O que não pode nem deve fazer é recorrer a métodos desonestos e falhos de ética, fazendo cair no logro as pessoas mais sugestionáveis e menos avisadas. Pessoalmente, já não levantaria qualquer objecção a que a associação Raríssimas lançasse, por exemplo, o sorteio de um automóvel, como já fez a ACAPO – Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal. É claro que a associação Raríssimas, a exemplo de quaisquer outras entidades sem fins lucrativos e de reconhecida utilidade pública, tem todo o direito de recorrer à rádio pública para se dar a conhecer aos ouvintes que dela poderão tirar proveito. Mas aí o anúncio teria de ter forçosamente outra redacção. Qualquer coisa como isto:
 
É portador de uma doença rara? Ou tem a seu cargo uma pessoa com deficiência mental ou doença rara? Se sim, sabia que existe uma associação para o informar dos seus direitos. Consulte-nos! Ligue para a Linha Rara: [número começado por 800 ou 808].
 
No meio disto tudo quem também fica muito mal na fotografia é a direcção da RDP, ao abster-se do escrutínio que lhe compete fazer ao teor dos anúncios que lhe são propostos para radiodifusão, no âmbito de publicidade institucional, não salvaguardando assim a posição dos cidadãos/ouvintes. Enfim, mais um caso que serve para exemplificar a desconsideração que António Luís Marinho e Rui Pêgo nutrem por quem lhes enche a barriga.