02 julho 2012

"A Vida dos Sons": deseja-se menos cinzenta e mais multicolor (II)

Na edição do programa "A Vida dos Sons" relativa ao ano de 1969, os assuntos de índole política e militar continuaram a preponderar, de forma esmagadora e sufocante.
De eventos culturais, apenas três mereceram menção – festival de Woodstock, programa televisivo "Zip-Zip" e a fundação dos Monty Python –, ainda assim sem o desejável desenvolvimento e conveniente ilustração sonora. Por exemplo: teria sido de bom tom que tivessem passado a "Pedra Filosofal" [>> YouTube], que Manuel Freire estreou precisamente no "Zip-Zip", e que ficou como um dos mais superlativos espécimes do nosso património poético-musical; já quanto ao festival de Woodstock, ficou a faltar um ou dois dos temas aí gravados mais emblemáticos do "flower power" (as flores da paz e do amor contra a Guerra do Vietname).

Aqui se referenciam, para que conste, alguns eventos importantes do ano de 1969 que foram (incompreensivelmente) omitidos:

1. Falecimento do escritor Alves Redol; paladino do neo-realismo e um dos nomes maiores dessa corrente literária, é autor dos romances "Gaibéus", "Avieiros", "Fanga", "Porto Manso", "Horizonte Cerrado", "A Barca dos Sete Lemes", "Uma Fenda na Muralha" e "Barranco de Cegos", entre outros, sem esquecer a peça de teatro "A Forja", uma das mais admiráveis abordagens dramáticas à incontornável problemática da morte;
2. Falecimento do escritor José Régio; figura cimeira da "Presença", distinguiu-se como poeta, dramaturgo, ficcionista e ensaísta; várias das suas obras, entre as quais a peça "Benilde ou a Virgem Mãe", foram adaptadas ao cinema por Manoel de Oliveira; haverá português (não troglodita) que nunca tenha ouvido, por João Villaret, o celebérrimo "Cântico Negro"? [>> YouTube];
3. Falecimento do fadista Carlos Ramos; começou como guitarrista acompanhador (nomeadamente de Ercília Costa, numa digressão pelos Estados Unidos da América, em 1939), afirmando-se depois como cantor, acompanhando-se a si próprio à guitarra; a ele se devem algumas das mais brilhantes pérolas do fado-canção, como o "Fado das Queixas" (letra de Frederico de Brito e música de Carlos Rocha) [>> YouTube];
4. Falecimento do regente de orquestra suíço Ernest Ansermet; maestro dos "Ballets Russes", de Diaghilev, a partir de 1915, fundou, três anos mais tarde, em Genebra, a (que se tornaria famosa) Orchestre de la Suisse Romande, à frente da qual se manteve até 1966; é o responsável por muitas gravações de referência, sobretudo de Stravinski, Debussy e Ravel;
5. Falecimento da actriz norte-americana Judy Garland; alcançou a imortalidade ao encarnar a pequena Dorothy no filme "O Feiticeiro de Oz" (1939), de Victor Fleming, onde canta "Over the Rainbow" [>> YouTube];
6. Atribuição do Prémio Nobel da Literatura ao dramaturgo irlandês Samuel Beckett; expoente máximo do teatro do absurdo, "En Entendant Godot" ("À Espera de Godot"), escrita em 1948, publicada em 1952 e levada à cena, pela primeira vez, a 4 de Janeiro de 1953, no Théâtre de Babylone, em Paris, é a sua peça mais emblemática e representada;
7. Edição do álbum "Contos Velhos, Rumos Novos", de José Afonso; é o disco em que o cantautor se faz acompanhar, pela primeira vez, por outros instrumentos além da viola – trompa, harmónica, cavaquinho, marimba, bombo – sem esquecer uma voz feminina (Teresa Paula Brito) que participa no tema "Vai, Maria, Vai" [>> YouTube]; deste belíssimo álbum, são de realçar: "Bailia" (sobre poema do trovador medieval Airas Nunes) [>> YouTube]; "Qualquer Dia" (poema de Fernando Miguel Bernardes) [>> YouTube], "Era de Noite e Levaram" (poema de Luís de Andrade Pignatelli) [>> YouTube] e "Já o Tempo se Habitua" (poema e música de José Afonso) [>> YouTube];
8. Edição do álbum "O Canto e as Armas", de Adriano Correia de Oliveira; baseado em poemas do livro homónimo de Manuel Alegre, que então se encontrava no exílio, o disco inclui espécimes de tocante beleza, tais como "Canto da Nossa Tristeza" [>> YouTube], "Trova do Vento Que Passa n.º 2" [>> YouTube] e "As Mãos" [>> YouTube];
9. Edição do álbum "Flores para Coimbra", de António Bernardino; constituído maioritariamente por poemas de Manuel Alegre, musicados por António Portugal e Francisco Filipe Martins, este é um disco referencial na história da canção de Coimbra; "E Alegre se Fez Triste", "Canção do Exílio", "Fado para um Amor Ausente", "Guitarras do Meu País", "Canto do Silêncio" e "Cantiga para os Que Partem" (sobre poema da galega Rosalía de Castro, que Adriano Correia de Oliveira gravaria no ano seguinte, com música de José Niza, sob o título "Cantar de Emigração") [>> YouTube] contam-se entre a dúzia de temas do alinhamento;
10. Edição do álbum "Canções do Mar e da Vida", de Luiz Goes; disco fundamental para a afirmação da balada de Coimbra, nele constam "Canção do Regresso", "Cântico de um Pescador", "Boneca de Trapo", "Cantiga de um Vagabundo" e esse verdadeiro hino de apelo à solidariedade e à fraternidade que é "Homem Só, Meu Irmão" [>> YouTube];
11. Edição do álbum "Epopeia", da Filarmónica Fraude; do mítico e meteórico grupo de António Avelar de Pinho (textos) e Luís Linhares (músicas), o conceptual "Epopeia", centrado na época dos Descobrimentos, é um dos discos mais singulares, arrojados e ambiciosos que se fizeram em Portugal nos anos 60; pode mesmo dizer-se, sem exagero, que foi precursor desse autêntico colosso da música portuguesa que é "Por Este Rio Acima" (1982), de Fausto Bordalo Dias; destaque para os temas "Na Ilha Virgem", "Só Marinheiros e Escravos se Afundam com a Nau" [>> YouTube], "Homenagem Póstuma", "Sebastião Morreu!" e "Os Bem-Aventurados";
12. Fecundação 'in vitro', pela primeira vez, de um óvulo humano, pelo fisiologista britânico Robert Geoffrey Edwards; primeiro e fundamental passo para a ciência no capítulo da reprodução humana, que possibilitou o nascimento do primeiro bebé-proveta, Louise Brown, em 1978; Robert Geoffrey Edwards será galardoado com o Prémio Nobel da Medicina em 2010.

Todos (ou quase todos) estes itens podiam ser devidamente ilustrados, ora com registos do arquivo da RDP (entrevistas, adaptações de peças de teatro e de obras romanescas, recitações de poemas, etc.) ora, no caso de repertório musical, com gravações discográficas.
Não cabia tudo em 50 minutos? Problema nada difícil de resolver: em vez de uma única edição (lacunar, espartilhada e cinzenta), façam duas – mais completas, desafogadas e variegadas.
Renova-se o pedido: deseja-se que "A Vida dos Sons" seja menos cinzenta e mais multicolor.


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