20 outubro 2011

Porquê o fim da reposição do "Teatro Imaginário"?

A 27 de Dezembro de 2006, na sequência da morte de Eduardo Street, tive o ensejo de tocar na questão do importantíssimo acervo de teatro radiofónico guardado no arquivo da RDP e de lembrar a quem de direito da obrigação que a rádio estatal tinha (tem) – enquanto concessionária do serviço público de radiodifusão – de dar aos ouvintes (designadamente aos mais novos) a oportunidade de fruírem desse património cultural.
No Verão de 2007, a direcção de programas da Antena 2 entendeu por bem render homenagem a Eduardo Street, resgatando das teias de aranha cerca de uma dúzia de peças por ele realizadas. Saudei então a iniciativa, mas não deixei de lamentar a curta duração do ciclo.
Em Maio de 2010, portanto, volvidos mais três anos, encarei com regozijo o início da retransmissão do "Teatro Imaginário". Tendo em conta as centenas de peças existentes no arquivo histórico, eu estava na expectativa de me puder deliciar por alguns anos com as peças que Eduardo Street e outros antes dele (como Odete de Saint-Maurice) tão diligentemente realizaram. Pura ilusão! Desde finais de Agosto último, o "Teatro Imaginário" deixou de aparecer na Antena 2. Agora apenas temos aquele arremedo de teatro radiofónico, entre o experimental e o grosseiro, a que chamam de "Teatro Sem Fios". Eu pergunto: porquê o fim da reposição do "Teatro Imaginário"? Espero que não me venham com a desculpa esfarrapada da contenção de custos pois estamos a falar de registos do arquivo histórico, o mesmo é dizer de "produtos" acabados, logo sem encargos financeiros acrescidos para a empresa. Bem diferente, portanto, do desinteressante e enfadonho q.b. "Teatro Sem Fios". A haver cortes, que deixassem cair este último e mantivessem o "Teatro Imaginário".
De tudo o que ouvi na recente e inexplicavelmente interrompida reposição do "Teatro Imaginário", relevo as nove peças de Gil Vicente: "O Auto de Mofina Mendes", "O Velho da Horta", "A Farsa de Inês Pereira", "Auto da Barca do Inferno", "Romagem dos Agravados", "Auto de Sibila Cassandra", "Amadis de Gaula", "Auto da Cananeia" e "O Juiz da Beira". Magnífico e sublime o trabalho dos actores que nelas intervieram com o seu talento e arte. Tesouros que não têm preço e que, presumivelmente, estão longe de ser os únicos relativos a Gil Vicente. Quero acreditar que das dezenas de peças que o fundador do teatro português escreveu, outras terão sido transpostas para teatro radiofónico, tais como: "Auto da Visitação" (também conhecido por "Monólogo do Vaqueiro") (1502); "Auto da Índia" (1509); "Auto dos Reis Magos" (1510); "Auto da Fé" (1510); "Quem tem Farelos?" (1515); "Auto da Barca do Purgatório" (1518); "Auto da Barca da Glória" (1519); "Auto da Alma" (1518); "Auto da Fama" (1520); "O Pranto de Maria Parda" (1522); "Auto da Feira" (1526); "Breve Sumário da História de Deus" (1527), "Auto da Lusitânia" (1532); "Floresta de Enganos" (1536).
Não terá a rádio estatal a obrigação cultural de resgatá-las todas e dá-las a ouvir?
E quem diz Gil Vicente, diz Almeida Garrett, António Patrício, Luís de Sttau Monteiro e Bernardo Santareno (apenas para citar quatro proeminentes dramaturgos nacionais) dos quais não constou qualquer obra na temporada finda em Agosto. Importa não esquecer ainda os grandes autores estrangeiros que Eduardo Street, e outros, adaptaram e realizaram para a estação pública, desde os gregos antigos (Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes) até ao teatro do absurdo (Beckett, Ionesco) passando por Shakespeare, Lope de Vega, Calderón de La Barca, Corneille, Molière, Racine, Marivaux, Goldoni, Beaumarchais, Schiller, Pushkin, Ibsen, Strindberg, Oscar Wilde, Bernard Shaw, Tchekov, Pirandello, Federico García Lorca, Bertolt Brecht, Eugene O'Neill, Tennessee Williams, Arthur Miller, Jean Anouilh, entre muitos outros.
Poderemos falar de verdadeiro serviço público de rádio quando tão valioso património fonográfico é ocultado aos ouvintes e deixado a apodrecer nas catacumbas da Rádio e Televisão de Portugal? Perante tal atitude obscurantista de quem dirige a Antena 2, com que ânimo poderão os (potenciais) amantes da arte de Talma continuar a desembolsar a contribuição do audiovisual?

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