05 dezembro 2011

Um requiem cortado em pedacinhos

Infelizmente, após a saída de João Pereira Bastos, a Antena 2 passou a dar-me motivos bastantes para a não sintonizar de forma assídua e regular, ao invés do que antes fazia. Com muito prazer e proveito intelectual, devo acrescentar em reconhecimento ao anterior director de programas.
Além da notória desqualificação da programação (se é que tal palavra é apropriada a uma grelha, em boa parte, preenchida com espaços de música "ad hoc" e sem qualquer lógica editorial), o capital humano é hoje incomparavelmente de muito mais baixo nível, quer no tocante à preparação intelectual, domínio e uso escorreito da língua portuguesa (léxico, sintaxe e prosódia), quer no que respeita ao timbre e colocação das vozes da locução – aspecto que alguns tendem a considerar acessório mas que não é nada despiciendo em rádio. Como se tudo isto não bastasse, os srs. Rui Pêgo e João Almeida, não percebendo que um canal de serviço público cultural não se pode reger pelos mesmos critérios das estações privadas de onde vieram, não descansaram enquanto não infestaram a Antena 2 com essa autêntica praga que são os sucessivos blocos de 'jingles' e 'spots' promocionais (a coisas da mais variada índole e de nula ou insignificante relevância cultural, denotando uma escandalosa promiscuidade com interesses privados). Para poupar os meus ouvidos a tão recorrente e despudorada agressão, a minha escuta da antena (pretensamente) cultural da rádio pública, passou a restringir-se a uns poucos programas de autor, por coincidência todos iniciados no consulado de João Pereira Bastos (circunstância que não deixa de ser bem eloquente quanto à míngua de programas de qualidade surgidos por iniciativa da direcção sucedânea).
Domingo passado, logo depois do toque de despertar (programado para as 09:05, justamente para escapar ao cartucho de 'jingles' e 'spots', que é disparado na viragem de cada hora), caí na ingenuidade de ligar para a Antena 2. E digo "ingenuidade" porque não decorreu muito tempo até me arrepender da decisão. O locutor de serviço, Pedro Rafael Costa, aparece a dizer que iríamos ouvir o "Requiem", de Mozart, pela Capela Real da Catalunha, de Jordi Savall e de Montserrat Figueras, esta recentemente desaparecida. Sendo a missa de defuntos do genial compositor de Salzburgo uma das minhas obras dilectas de toda a música (erudita ou não), e dado que a gravação que possuo na minha colecção é outra, fiquei com o apetite aguçado e estava na expectativa de começar o meu domingo em grande. Puro engano!... Ao fim de dois ou três andamentos (o que não terá ido muito além de uns escassos dez a quinze minutos), a transmissão é abruptamente interrompida pelo citado locutor, dizendo que a secção seguinte do "Requiem" (a segunda de várias, presume-se) ficaria para o próximo fim-de-semana. Como interpretar tão estrambólico procedimento? Será que o sr. Pedro Rafael Costa deseja a todo o custo fidelizar ouvintes ao seu espaço musical e o truque é repartir obras apetecíveis em pedacinhos, por dias diferentes, no caso com uma semana de desfasamento? Se é essa a ideia, comigo não pega. No próximo domingo, não vou, com toda a certeza, despertar com a Antena 2. Está completamente fora de questão! Preferiria mil vezes comprar o disco e ouvi-lo de fio a pavio, sem quaisquer constrangimentos. Se há obras que só fazem sentido se ouvidas na íntegra a cada fruição, o "Requiem", de Mozart, é indubitavelmente uma delas. Dá-la a ouvir aos pedacinhos em dias diferentes (mas mesmo que fosse no mesmo dia...), não só é um perfeito disparate, como um péssimo serviço prestado à Música. Não dignifica a obra, amesquinha o autor que a criou e defrauda o ouvinte. Tratando-se de uma das mais superlativas obras-primas da História da Música, o "Requiem", de Wolfgang Amadeus Mozart, não é equiparável a uma vulgar telenovela em que se deixa a trama em suspenso para o próximo episódio...
Enquanto cidadão e contribuinte, não posso deixar de formular esta pertinente questão a quem de direito: ninguém quer acudir à Antena 2? Se não, eu tenho de ponderar seriamente a suspensão do pagamento da chamada contribuição do audiovisual.


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20 outubro 2011

Porquê o fim da reposição do "Teatro Imaginário"?

A 27 de Dezembro de 2006, na sequência da morte de Eduardo Street, tive o ensejo de tocar na questão do importantíssimo acervo de teatro radiofónico guardado no arquivo da RDP e de lembrar a quem de direito da obrigação que a rádio estatal tinha (tem) – enquanto concessionária do serviço público de radiodifusão – de dar aos ouvintes (designadamente aos mais novos) a oportunidade de fruírem desse património cultural.
No Verão de 2007, a direcção de programas da Antena 2 entendeu por bem render homenagem a Eduardo Street, resgatando das teias de aranha cerca de uma dúzia de peças por ele realizadas. Saudei então a iniciativa, mas não deixei de lamentar a curta duração do ciclo.
Em Maio de 2010, portanto, volvidos mais três anos, encarei com regozijo o início da retransmissão do "Teatro Imaginário". Tendo em conta as centenas de peças existentes no arquivo histórico, eu estava na expectativa de me puder deliciar por alguns anos com as peças que Eduardo Street e outros antes dele (como Odete de Saint-Maurice) tão diligentemente realizaram. Pura ilusão! Desde finais de Agosto último, o "Teatro Imaginário" deixou de aparecer na Antena 2. Agora apenas temos aquele arremedo de teatro radiofónico, entre o experimental e o grosseiro, a que chamam de "Teatro Sem Fios". Eu pergunto: porquê o fim da reposição do "Teatro Imaginário"? Espero que não me venham com a desculpa esfarrapada da contenção de custos pois estamos a falar de registos do arquivo histórico, o mesmo é dizer de "produtos" acabados, logo sem encargos financeiros acrescidos para a empresa. Bem diferente, portanto, do desinteressante e enfadonho q.b. "Teatro Sem Fios". A haver cortes, que deixassem cair este último e mantivessem o "Teatro Imaginário".
De tudo o que ouvi na recente e inexplicavelmente interrompida reposição do "Teatro Imaginário", relevo as nove peças de Gil Vicente: "O Auto de Mofina Mendes", "O Velho da Horta", "A Farsa de Inês Pereira", "Auto da Barca do Inferno", "Romagem dos Agravados", "Auto de Sibila Cassandra", "Amadis de Gaula", "Auto da Cananeia" e "O Juiz da Beira". Magnífico e sublime o trabalho dos actores que nelas intervieram com o seu talento e arte. Tesouros que não têm preço e que, presumivelmente, estão longe de ser os únicos relativos a Gil Vicente. Quero acreditar que das dezenas de peças que o fundador do teatro português escreveu, outras terão sido transpostas para teatro radiofónico, tais como: "Auto da Visitação" (também conhecido por "Monólogo do Vaqueiro") (1502); "Auto da Índia" (1509); "Auto dos Reis Magos" (1510); "Auto da Fé" (1510); "Quem tem Farelos?" (1515); "Auto da Barca do Purgatório" (1518); "Auto da Barca da Glória" (1519); "Auto da Alma" (1518); "Auto da Fama" (1520); "O Pranto de Maria Parda" (1522); "Auto da Feira" (1526); "Breve Sumário da História de Deus" (1527), "Auto da Lusitânia" (1532); "Floresta de Enganos" (1536).
Não terá a rádio estatal a obrigação cultural de resgatá-las todas e dá-las a ouvir?
E quem diz Gil Vicente, diz Almeida Garrett, António Patrício, Luís de Sttau Monteiro e Bernardo Santareno (apenas para citar quatro proeminentes dramaturgos nacionais) dos quais não constou qualquer obra na temporada finda em Agosto. Importa não esquecer ainda os grandes autores estrangeiros que Eduardo Street, e outros, adaptaram e realizaram para a estação pública, desde os gregos antigos (Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes) até ao teatro do absurdo (Beckett, Ionesco) passando por Shakespeare, Lope de Vega, Calderón de La Barca, Corneille, Molière, Racine, Marivaux, Goldoni, Beaumarchais, Schiller, Pushkin, Ibsen, Strindberg, Oscar Wilde, Bernard Shaw, Tchekov, Pirandello, Federico García Lorca, Bertolt Brecht, Eugene O'Neill, Tennessee Williams, Arthur Miller, Jean Anouilh, entre muitos outros.
Poderemos falar de verdadeiro serviço público de rádio quando tão valioso património fonográfico é ocultado aos ouvintes e deixado a apodrecer nas catacumbas da Rádio e Televisão de Portugal? Perante tal atitude obscurantista de quem dirige a Antena 2, com que ânimo poderão os (potenciais) amantes da arte de Talma continuar a desembolsar a contribuição do audiovisual?

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19 setembro 2011

Pérolas da música portuguesa votadas ao ostracismo

José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Amália Rodrigues, Luiz Goes, Carlos Paredes, Pedro Caldeira Cabral, Manuel Freire, Carlos do Carmo, Fausto Bordalo Dias, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Luís Cília, Vitorino, Janita Salomé, Teresa Silva Carvalho, Pedro Barroso, Paco Bandeira, Carlos Mendes, Quarteto 1111, Banda do Casaco, Trovante, Né Ladeiras, João Lóio, Afonso Dias, José Medeiros, João Afonso, Amélia Muge, Filipa Pais, Isabel Silvestre (no seio do Grupo de Cantares de Manhouce ou a solo), Teresa Salgueiro (no seio dos Madredeus ou a solo), Rão Kyao, Júlio Pereira, José Peixoto, Pedro Jóia, António Pinho Vargas, João Paulo Esteves da Silva, Brigada Victor Jara, Almanaque, Ronda dos Quatro Caminhos, Vai de Roda, Raízes, Terra a Terra, Pedra d'Hera, José Barros & Navegante, Gaiteiros de Lisboa, Frei Fado d'El Rei, Sebastião Antunes (no seio da Quadrilha ou a solo), Toque de Caixa, Galandum Galundaina, Realejo, Danças Ocultas, Diabo a Sete, Pé na Terra, Roda Pé, Vá-de-Viró, Belaurora, Helena Oliveira (no seio do grupo Orpheu ou a solo), César Prata...
As pessoas minimamente informadas e amantes de boa música sabem que todos os nomes citados são de artistas de primeira água, sendo que a eles se deve uma parte muito significativa do repertório mais valioso e perene da música portuguesa, desde que há registo fonográfico. Pois todos eles (e muitos outros detentores real mérito e valia – a lista completa seria fastidiosa) têm em comum a desdita se serem tratados como "filhos de um deus menor" pela rádio pública do seu próprio país. Uns (a maioria) estão, pura e simplesmente, excluídos na lista de difusão musical (vulgo 'playlist') do canal generalista da rádio estatal, a
Antena 1, e os poucos que nela figuram recebem, sem apelo nem agravo, tratamento de terceira classe. Quero com isto dizer que a sua representação se restringe a um ou dois temas (que geralmente nem sequer correspondem ao melhor dos respectivos repertórios), e com uma aparição em antena tão esparsa e rarefeita que ouvi-los torna-se um exercício quase tão difícil como encontrar uma agulha num palheiro.
Em contrapartida, a chamada "pop de plástico" (a vinda de fora e a produzida cá dentro) recebe tratamento de privilégio, quer em número de temas incluídos na 'playlist', quer na frequência de difusão dos mesmos.
Ora, como facilmente se poderá inferir, se a marginalização da melhor música portuguesa é grave em qualquer rádio generalista de Portugal, ainda mais o é na emissora do próprio Estado, atendendo à obrigação que tem (formalmente assumida no contrato de concessão do serviço público de radiodifusão) de a divulgar e promover de forma cabal e satisfatória. Obrigação essa que decorre da circunstância do financiamento ser público – contribuição do audiovisual (que actualmente se cifra em €27,00 anuais + I.V.A.) e transferências directas do Orçamento de Estado.
O que se disse a respeito da Antena 1 aplica-se igualmente à
Antena 3, outro canal do chamado "serviço público de rádio" que marginaliza, de forma perfeitamente criminosa, o nosso património musical mais valioso e qualificado.
Urge, portanto, que o problema seja resolvido por quem tem nas suas mãos o poder para tal. E para mostrar, com exemplos concretos e audíveis, o quanto é vasto e qualitativamente superior o repertório votado ao ostracismo pelas Antena 1 e 3, dar-se-á hoje início à expedição de uma circular, ao ritmo de uma por semana, com a letra de um espécime poético-musical (ou instrumental) e respectivo link para audição. Felizmente que a internet, nas suas diversas plataformas de armazenamento de som e vídeo, designadamente no YouTube (http://www.youtube.com/playlist?list=FLys6VB6Y_S4sv6_Xbet-9fA
), é já (e sê-lo-á cada vez mais) um importante repositório de boa música portuguesa.Para passar a receber a referida mensagem na sua caixa de e-mail, basta que se inscreva no Grupo de Amigos do LUGAR AO SUL.


Textos relacionados:

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Petição pública: por uma ANTENA 1 mais divulgadora da música portuguesa
Considerações sobre a 'playlist' da Antena 1

30 agosto 2011

R.T.P. condenada em tribunal



Para conhecimento dos cidadãos/contribuintes portugueses aqui se transcreve uma notícia publicada no semanário angolano "Novo Jornal", de 26 de Agosto de 2011:

«A RTP foi condenada em tribunal por despedimento ilícito do jornalista Gabriel Alves, a quem terá de pagar uma indemnização que ultrapassa o meio milhão de euros.
O repórter, uma das caras mais conhecidas na informação desportiva, e trabalhador da RTP durante 32 anos, foi despedido em 2007.
A discórdia entre o jornalista e a estação remonta a 2006, altura em que Gabriel Alves realizou a cobertura do Campeonato do Mundo de Futebol da Alemanha para a Televisão Pública de Angola (TPA), na sequência de um acordo de colaboração entre as duas estações públicas. Findo o período estabelecido, a TPA convidou o jornalista a permanecer por mais um mês, comunicando essa intenção à RTP, que não se pronunciou, favorável ou desfavoravelmente. Quando regressou à RTP Gabriel Alves foi impedido de realizar qualquer trabalho. O jornalista interpôs uma acção no Tribunal de Trabalho, que agora condenou a RTP a pagar os salários em atraso desde Novembro de 2007 até Julho de 2011, a que se somam vários subsídios e a indemnização por antiguidade. No total, Gabriel Alves deverá receber um valor próximo de 550 mil euros.» (in "Novo Jornal", 26.08.2011)


Em 2007, o presidente do Conselho de Administração da R.T.P. era Almerindo Marques. Alguém vai agora pedir-lhe responsabilidades por este acto de gestão gravemente danoso para os bolsos dos contribuintes? É claro que não! O sr.
Almerindo pode ficar absolutamente descansadinho da vida...


Adenda (em 31.08.2011):

O jornalista Hugo Leal teve a gentileza de me alertar para o facto desta notícia ter sido publicada, em primeira-mão, pelo diário português "Correio da Manhã", no dia 21.08.2011. O seu a seu dono.
Aqui fica o link:
http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/lazer/tv--media/rtp-condenada-a-pagar-550-mil-euros-a-gabriel-alves

01 agosto 2011

Porquê a suspensão do "Lugar ao Sul"?

Em virtude dos caprichos umbilicais do sr. Rui Pêgo, o aclamado e popular "Lugar ao Sul" deslizou das 09:00 horas de sábado para as obscuras 07:00. O horário é claramente indigno e aviltante para os ouvintes que depois de uma árdua semana de trabalho gostariam de pôr em dia o seu merecido descanso. No meu caso pessoal, não estando disposto a fazer tal sacrifício, ademais originado por pérfida arbitrariedade, mas não querendo deixar de ouvir o programa no horário a que me habituei, a solução de recurso que se me ofereceu foi a gravação pré-programada. Ora, às 09:00 de sábado passado, mal soou o despertador, liguei o meu aparelho na expectativa de me deliciar com mais uma saborosa e nutritiva conversa de Mestre Rafael Correia com algum poeta, músico ou homem/mulher sábio(a) do nosso Portugal profundo. Para meu desapontamento, surge na gravação um tal José Candeias a conduzir uma emissão a partir do Museu de Portimão, em moldes retintamente decalcados do programa "Terra-a-Terra", emitido na TSF entre as 09:00 e as 11:00 de sábado. Pensei: na "sapiente" cabeça de Rui Pêgo surgiu agora a luminosa ideia de fazer concorrência directa à rádio de Joaquim Oliveira, não com um programa diferente e alternativo mas com um émulo?! Bem, não brotando de tal mente ideias originais, limitando-se a copiar modelos de outrem, nem sequer vou ao ponto de criticar o aparecimento na grelha da Antena 1 de tal programa. Não posso é deixar de me insurgir contra a supressão do "Lugar ao Sul", já que sobre ele não pendia a contingência do seu autor ter entrado de férias (pois deixou de trabalhar para a RDP em meados de 2009), como é o caso dos realizadores dos dois programas seguintes na grelha da Antena 1 – Júlio Isidro ("Ilha dos Tesouros"), Ana Aranha e Iolanda Ferreira ("A Vida dos Sons"). Tratando-se de um programa de arquivo nada justificaria que fosse suspenso. Seria pedir muito à 'editora' Cláudia Almeida que fosse ao arquivo buscar quatro ou cinco registos do "Lugar ao Sul" e de lhes adicionasse uma breve nota de apresentação? Não se pede à sra. Cláudia Almeida mais que a simples menção da data da emissão original, o local da recolha e eventualmente os nomes e ocupações dos interlocutores de Rafael Correia, pois em tudo o que vá além disso a probabilidade de haver erros e incorrecções é muito elevada. Vistas bem as coisas, tal edição nem é absolutamente necessária e talvez seja preferível ouvir as gravações tal qual Rafael Correia as deixou, sem intervenção de terceiros, sobretudo quando se trata de gente incompetente e mal preparada. Deduz-se, portanto, que a suspensão do "Lugar ao Sul" decorreu, não de uma impossibilidade incontornável, mas de decisão arbitrária de Rui Pêgo. Um gesto que, aliás, se inscreve na linha de afronta e de desconsideração com que tal indivíduo sempre tratou os fiéis ouvintes do programa de Rafael Correia. Se o sr. Rui Pêgo fazia mesmo questão que o espaço conduzido por José Candeias tivesse três horas de duração (apesar de tremendamente burocrático e enfadonho de se ouvir – falou o presidente da Junta de Freguesia, segue-se o presidente da Câmara, depois tem a palavra o presidente da associação dos hoteleiros, etc.) que o colocasse entre as 08:00 e as 11:00. Assim, a almejada concorrência à TSF seria taco a taco, logo mais eficaz. É caso para dizer que até nesses aspectos de pura estratégia concorrencial (ainda que contrários à filosofia que deve nortear o serviço público de rádio) Rui Pêgo se revela um autêntico pitosga.


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"Lugar ao Sul": calinadas da 'editora' Cláudia Almeida

21 julho 2011

"Lugar ao Sul": calinadas da 'editora' Cláudia Almeida

Na nota de apresentação à edição de sábado passado, dia 16 de Julho, do programa "Lugar ao Sul", a sra. Cláudia Almeida começou com estas palavras ('ipsis verbis'): «GNR, Trovante, Vitorino, Fausto Bordalo Dias, Carlos do Carmo, Rui Veloso – a música portuguesa no arranque desta manhã do "Lugar ao Sul". Rafael Correia esteve na piscina do Sport Algés e Dafundo...»
Ora eu estava na expectativa de ouvir todos artistas citados, mas com o desenrolar da emissão vim a constatar que fui grosseiramente enganado. Vitorino e Fausto Bordalo Dias não constaram, ao passo que foram omitidos dois artistas que efectivamente figuraram no programa: João Fernando (tema "
Tejo Que Levas as Águas") e Fernando Marques (tema "Cais da Pimenta").
Sendo uma pessoa com conhecimentos bastante limitados no tocante à música/discografia portuguesa, a jornalista Cláudia Almeida, no respeito pelas regras da deontologia profissional, devia documentar-se e/ou informar-se junto de quem a pudesse elucidar. Mas não! Pôs-se a adivinhar e... saiu asneira. João Fernando e Fernando Marques, dois eméritos compositores/intérpretes, se ouviram o programa, não devem ter gostado de ver as suas músicas atribuídas a outrem. E Vitorino e Fausto Bordalo Dias, artistas consagradíssimos e com vasta obra editada, não precisam, com certeza, que obra alheia passe como sua. Enfim, uma trapalhada que teria sido certamente evitada se a edição do programa estivesse em mãos mais sabedoras e profissionais. E neste ponto não podemos deixar de chamar à pedra o sr. Rui Pêgo, pelo flagrante erro de 'casting' que cometeu ao confiar à sra. Cláudia Almeida uma tarefa para a qual ela não tem, comprovadamente, a necessária preparação e competência. Se se disser que Rui Pêgo é igualmente um erro de 'casting' na direcção da rádio pública então ficam explicadas muitas das clamorosas deficiências que se têm registado no serviço durante os últimos anos.

05 julho 2011

"Musica Aeterna": um programa ao serviço do apostolado católico? (II)

Na sequência meu 'post' "Musica Aeterna": um programa ao serviço do apostolado católico? o autor do programa, João Chambers, fez-me chegar uma carta com o pedido expresso para publicação, invocando o direito de resposta. Para o exercício desse direito é que os blogues facultam uma caixa de comentários. Não sendo possível usar essa via devido a impedimento imprevisto (que espero seja passageiro), aqui fica a missiva tal qual a recebi, seguida de uma nota da minha lavra.


«Ex.mo Senhor Álvaro José Ferreira,

mão amiga fez-me chegar um texto escrito por V. Ex.a no blogue A NOSSA RÁDIO, onde, a propósito do MUSICA AETERNA do passado sábado que versou o Dia de Pentecostes, discorre, entre outras questões, sobre o facto de se sentir violentado na sua consciência (de livre-pensador) e o pressuposto (totalmente errado) de o respectivo autor professar o catolicismo.

Cabe antes de mais esclarecer que a totalidade dos programas concebidos para a Antena 2 tem sempre uma temática associada, logicamente com repertório alusivo. Assim, seguindo essa premissa, e se forem tidos em consideração alguns dos muitos elaborados ao longo de dez anos de colaborações regulares, ouso questionar se deverá o signatário enquanto autor ser considerado

a) fascista, por difundir o pensamento de Hobbes segundo o qual deveria prevalecer a vida sob um soberano e a necessidade absoluta de se lhe obedecer;

b) monárquico, por abordar o quinto centenário da coroação de Henrique VIII ou a Pietas Austriaca, ou seja, um código religioso e moral que proclamou ao mundo a devoção e a glorificação dos Habsburgo;

c) jesuíta, por dissertar sobre o respectivo papel desempenhado no campo educativo;

d) franciscano, por escrever sobre a Primeira Ordem dos Frades menores e um dos seus principais cultores (Santo António);

e) maçon, por redigir sobre o surgimento e a consequente expansão das sociedades secretas no século XVIII;

f) catastrofista, por referenciar a representação da morte após o Concílio de Trento e a influência dos “Exercícios Espirituais” de Inácio de Loyola;

g) evangelizador, por mencionar o papel fundamental da expansão irlandesa e das produções hibérnico-saxónicas, germânicas, norte-europeias e lombardas;

h) deísta, por falar sobre as respectivas controvérsias na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII;

i) empirista, por divulgar os textos de Locke;

j) bizantino, por aludir à Queda de Constantinopla e ao legado da antiga civilização de Bizâncio;

k) católico (de novo) por relatar o mecenato papal da Roma do século XVII, as “Missas Breves” de Bach, o capítulo dedicado a São Tomé constante da “Legenda Áurea” de Voragine, o “Cântico dos Cânticos”, sobre o qual, desde a Idade Média, foram escritas algumas das mais admiráveis páginas da História da Música Ocidental, a História da Natividade, o conceito de “Paixão”, o legado do Padre Manuel Bernardes, a por V. Ex.a mencionada “Assunção da Virgem”, etc, etc, etc.;

l) ortodoxo, por desenvolver sobre a religião e os ícones legados;

m) ateu, por discorrer sobre festa do Calendimaggio e a “Fábula de Orfeu”, para além de iluminista, absolutista, etc, etc, etc.

Creio que estas temáticas, a par de numerosas outras já abordadas em anteriores emissões, desmistificam, de imediato, a opinião de que “a pretexto desta ou daquela solenidade ou festividade católica (vale o mesmo para qualquer outra confissão) queira fazer do programa uma sessão de catequese” (sic!).

Tenho, ainda, o grato prazer de, com a devida vénia, reencaminhar V. Ex.a para parte de um texto, extraído da “Contemplação Carinhosa da Angústia”, onde, a determinada passagem, Agustina refere o seguinte:

“A crítica é menos eficaz do que o exemplo. É de considerar se a grande sugestão para usar da crítica nos nossos tempos e que põe em causa todos os valores consagrados, não é o resultado duma anemia profunda do acto de vontade de toda uma sociedade. Todos temos consciência de como o exemplo se tornou interdito, como o indivíduo, na sua excepção perturbadora, é causa de mal-estar. Dir-se-ia que a fraqueza, a breve virtude, a mediocridade, de interesses e de condições, têm prioridade sobre o modelo e a utopia. A par desta dimensão rasa do despotismo do demérito, levanta-se uma rajada de violência. É de crer que a violência é hoje a linguagem bastarda da desilusão e o reverso do exemplo; representa a frustração do exemplo.”.
Possuindo a plena consciência de nada ser mais difícil, e, por isso mesmo, tão precioso, do que ser capaz de decidir, julgo, sinceramente, que o MUSICA AETERNA só ficou a ganhar com a opção de nele ter incluído esta (para V. Ex.a) controversa temática.

Além disso, cumpre-me também informar que em quase dez anos (perfazem-se no próximo dia 6 de Julho) de colaborações regulares com a Antena 2 – MUSICA AETERNA, DIVINA PROPORÇÃO e A HERANÇA DE ATENA, os dois últimos em parceria com Ana Mântua - é a segunda vez que um programa por mim concebido encontrou um eco de desagrado. Obviamente, tal é uma situação que me preocupa sempre, facto que, apesar das numerosas felicitações recebidas, me levou a fazer um exame de consciência e tentar descortinar onde poderia estar a falha. Devo confessar, e desculpe-me discordar da opinião por si manifestada, que não a consegui encontrar. Onde se vislumbra o seu descontentamento, outros encontraram motivos para felicitações. Na tal primeira crítica recebida, o enfado manifestava-se não pela música, indiscutivelmente sublime (“As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz” na extraordinária versão de Savall), tão-pouco pelos textos de minha autoria, mas sim pelos escritos que então fiz citar de Saramago. Calculei, de antemão, como, aliás, agora também aconteceu, que nela fazer constar a opinião daquela passagem bíblica pelo controverso vencedor do prémio Nobel de, salvo erro, 1998 iria desagradar a alguns ouvintes, principalmente, julgo, devido às posições políticas e, sobretudo, religiosas por ele sempre assumidas. No entanto, tal facto não podia, nem devia, tornar-se num impeditivo para assumir a minha decisão de lhe fazer referência a bem de um serviço público que, creia, presto o melhor que posso e sei. Ao elaborar o texto que acompanhou a transmissão da obra, e numa perspectiva de poder dar mais ênfase (ou força, se assim quiser) à concepção geral do programa, optei, independentemente do que essa atitude pudesse representar para muitos ouvintes, por incluir algumas das palavras ali incluídas. Tendo em conta essa decisão, e reduzindo-me à minha insignificância, ousei questionar quem era eu para poder “discutir” a autoridade teológica de Saramago. Mas, como homem de rádio que também sou, já com alguns anos de experiência de ambos os lados, ou seja, quer como autor/realizador, quer como ouvinte, e numa perspectiva puramente pessoal, devo confessar que, independentemente de gostar bastante do teor dos textos e da leitura que o João Pedro então imprimiu (aqui, felizmente, e para utilizar uma metáfora musical, estamos em perfeita sintonia), fiquei muitíssimo satisfeito com o resultado global. Então como agora! Se a “discussão” (no bom sentido, entenda-se) sobre a crença religiosa de cada um não deve ser para aqui chamada ou ser aqui discutida, tanto mais porque cópias da correspondência são enviadas a várias pessoas ou entidades, já o teor do programa que tanto o incomodou pode e deve sê-lo. Quando afirma, e passo a citá-lo,

“…Em todo o caso, o tratamento e desenvolvimento que lhe merecem os assuntos ligados ao catolicismo, com abundante citação de textos doutrinários produzidos ou avalizados pela Igreja Católica, leva-me a presumir, se não de uma inconfessada empatia, pelo menos de um não questionamento do teor de tal literatura, e nessa medida reconhecendo-lhe crédito intelectual…” [excerto de carta entretanto enviada a João Chambers]

é, certamente, por não ser um ouvinte assíduo. Se o fosse teria escutado num dos programas anteriores, dedicado à efeméride dos 650 anos da morte de Philippe de Vitry, em vários momentos da emissão, o Roman de Fauvel, isto é, uma crítica à corrupção da Igreja e ao sistema político vigente. Além disso, entre muitos outros exemplos, posso referir também as constantes alusões ao Concílio de Trento, que, como certamente saberá, se desenrolou em três sessões e onde, entre outros assuntos, se definiu a eliminação da corrupção dos costumes do clero. Assim, conceber os MUSICA AETERNA em torno de efemérides ou acontecimentos, religiosos ou não, é, julgo, uma forma produtiva de criar na Antena 2 um espaço intercultural, já que aquelas permitem o cruzamento da harmonia com outras artes/conteúdos, circunstância que acaba por proporcionar uma perspectiva multifacetada da arte dos sons. Abordá-las, quer sejam de carácter nacional ou internacional, quer relacionadas, na maioria dos casos, com a cultura judaico-cristã, decorre de uma “pesadíssima” herança que carregamos no Velho Continente e que não podemos, nem devemos, olvidar. Assim, sem surpresa, vejo-me na obrigação de lhe criticar as considerações feitas sobre o tema de um único programa, ignorando, ou não se preocupando em inteirar, de muitas outras temáticas abordadas e que fiz constar no meu anterior mail. A resposta enviada defende que será uma dedução abusiva pautar as opções ideológicas do autor, ou seja, eu próprio, a partir de uma determinada temática abordada, questionando se pelo facto de referir o protestantismo na Alemanha setentrional do século XVII, como, aliás, já o fiz, fará de mim protestante. O ecletismo que se encontra na génese do MUSICA AETERNA está ausente da crítica inicial e, curiosamente, ou talvez não, não obstante a resposta, também do segundo. Além disso, também o Álvaro, e permita-me a dispensa de formalismos, se refere à falta de questionamento do teor de tal literatura utilizada no programa (Bíblia, “esquecendo-se” da também bastas vezes citada protestante, patrística, etc.), já que não cabe ali concebê-lo. E por falar em Bíblia, o que ali diz sobre ela é quase um despropósito, no caso, totalmente a despropósito num texto onde reconhece que a música é sacra e, logo, conhecidamente, nela baseada seja lá qual for o credo concreto de cada compositor, os mais deles pouco católicos, aliás. Com a devida vénia, uma enormidade essa referência. Fazer questionar e reflectir será antes apanágio do QUESTÕES DE MORAL, programa do meu particular amigo Joel Costa e sobre o qual nos encontramos em total consonância. Dar espaço a tal tipo de abordagem secundariza, a meu ver, o papel da harmonia no MUSICA AETERNA. Considerando que numa emissão de duas horas, o texto, ou seja, aquilo que lhe serve de esboço, apenas ocupa, em média, cerca de trinta minutos, nunca a música poderia ser passada para uma posição de subalternidade ou de menor relevância. Considerar isso será, a meu ver, um tremendo equívoco.

Queria, ainda, acrescentar que, após ter feito uma pesquisa ao seu blogue, verifiquei, com uma pontinha de orgulho, devo confessar, em escritos anteriores, apenas elogios da sua parte (e jamais algo de negativo) aos programas por mim realizados nesta década de colaboração com a Antena 2. Tal levou-me, de imediato, a estranhar que, ao mínimo sinal de desagrado, o Álvaro não tenha tido esse facto em consideração, nem tão-pouco se tenha dignado a mencioná-lo. Salvo melhor opinião, julgo que não teria sido... de mau tom.

Sem outro assunto de momento, queira aceitar, Sr. Álvaro de Jesus Ferreira, a expressão dos melhores cumprimentos do

João Chambers
MUSICA AETERNA
Antena 2»



Agora a minha nota:

Para mim, não é especialmente importante saber qual a orientação religiosa do Sr. João Chambers, se é que tem alguma. As suas convicções religiosas pertencem ao seu foro íntimo e merecem, naturalmente, o maior respeito da minha parte, quaisquer que elas sejam. Apenas aludi a essa questão porque o assunto a isso impelia e para melhor explicitação do meu ponto de vista.
Reconheço o eclectismo de temáticas tratadas no "Musica Aeterna" e não me custa nada louvar o autor do programa nesse ponto. E havendo uma indesmentível carga secular de catolicismo na produção musical anterior ao Romantismo, seria muito redutor e falho de razoabilidade que essa dimensão não fosse contemplada num programa que tem como âmbito justamente a música antiga (expressão que comummente se usa à falta de melhor – a música realmente boa extravasa a temporalidade, embora a época de criação possa ser referenciável). Nesta ordem de ideias – como já havia enunciado anteriormente – a atenção que dá à produção musical sacra de qualidade merece o meu incondicional aplauso e só lhe fico grato por me dar a oportunidade de ouvir obras e interpretações de altíssima valia que nunca (ou muito raramente) aparecem noutros programas ou espaços musicais da Antena 2 (falo da Antena 2 porque é a única rádio portuguesa consagrada à música erudita).
No caso do Espírito Santo, e mais concretamente da solenidade do Pentecostes, a minha posição crítica não tem tanto a ver com o tema em si, menos ainda com a música seleccionada, mas mais com o teor confessional/dogmático dos textos que o Sr. João Chambers citou ou redigiu. Ainda estaria disposto a tolerar que citasse a passagem bíblica do episódio do Pentecostes, para contextualização. Foi longe de mais, na minha opinião, quando se socorreu de literatura doutrinária católica. Não havia necessidade! Causar-me-ia menos anticorpos se, em vez desses textos, tivesse seleccionado poemas alusivos ao Espírito, em sentido lato e não apenas na acepção católica ou judaico-cristã.
Por último, uma breve consideração ao texto que citou da grande escritora Agustina Bessa-Luís. Começo por dizer que estou genericamente de acordo com o seu teor. Apenas ponho algumas reservas ao trecho «É de considerar se a grande sugestão para usar da crítica nos nossos tempos e que põe em causa todos os valores consagrados, não é o resultado duma anemia profunda do acto de vontade de toda uma sociedade.». Penso que a problematização e a análise crítica do mundo e da acção humana, longe de resultar «duma anemia profunda do acto de vontade de toda uma sociedade» é antes um factor de vitalidade e de salutar progresso civilizacional. Não tivesse existido um Voltaire e outros grandes iluministas a contestar o dogmatismo/obscurantismo religioso e correlativo poder temporal da Igreja e é muito provável que ainda hoje ardessem seres humanos em autos-de-fé (para gáudio sádico de zelosos seguidores da Lei de Deus). Ao contrário do que afirma Agustina, nem todos os valores consagrados são bons: muitos deles decorrem da prevalência de interesses – políticos, económicos, religiosos – nas sociedades. As revoluções e as grandes rupturas de paradigma político-social acontecem precisamente quando tal 'status quo' deixa de ser mais sustentável.
Subscrevo e friso bem estas palavras de Agustina Bessa-Luís: «Todos temos consciência de como o exemplo se tornou interdito, como o indivíduo, na sua excepção perturbadora, é causa de mal-estar. Dir-se-ia que a fraqueza, a breve virtude, a mediocridade, de interesses e de condições, têm prioridade sobre o modelo e a utopia. A par desta dimensão rasa do despotismo do demérito, levanta-se uma rajada de violência. É de crer que a violência é hoje a linguagem bastarda da desilusão e o reverso do exemplo; representa a frustração do exemplo.»Álvaro José Ferreira é um indivíduo que, na sua excepção perturbadora, causa mal-estar, justamente por questionar a fraqueza, a breve virtude, a mediocridade, de interesses e de condições, que na rádio estatal têm prioridade sobre o modelo e a utopia. Prevalece o despotismo do demérito, e a falta de vontade (e de capacidade) para tornar o serviço num exemplo de excelência. Levanta-se uma rajada de violência verbal (ou de autismo arrogante) sempre que os cidadãos/contribuintes/ouvintes tomam a atitude lúcida de dizer "O rei vai nu". É de crer que a violência e o autismo são hoje, na estação pública, a linguagem bastarda da incompetência e o reverso do exemplo; representam a frustração do exemplo. (com a devida vénia à insigne escritora Agustina Bessa-Luís).

Álvaro José Ferreira

27 junho 2011

Publicidade comercial na rádio pública



É através da publicidade comercial que os órgãos de comunicação social do sector privado garantem a sua sustentabilidade económica. Devido a tal contingência a programação de uma estação de rádio privada está naturalmente condicionada pela lógica das audiências. O serviço público de rádio, pela natureza que lhe é intrínseca, não podia estar sujeito a tal constrangimento, pelo que o Estado determinou que o seu financiamento fosse assegurado com dinheiros públicos – os relativos às transferências directas do Orçamento de Estado e os que provêm da taxa de radiodifusão (rebaptizada, há meia-dúzia de anos, de contribuição do audiovisual, por forma a que a televisão passasse comer do bolo – a parte de leão, acrescente-se), que é cobrada na factura da electricidade e cujo montante mensal se cifra actualmente em 2,25 euros (+ IVA).
A Antena 1 podia assim fornecer um serviço de qualidade, quer na vertente da informação quer na vertente da programação, e os ouvintes tinham a garantia de o poder fruir sem que os seus ouvidos fossem massacrados com publicidade. Com um ou outro desvio pontual, foi assim que as coisas se processaram até meados de 2005. Com a colocação na direcção de programas das Antenas 1, 2 e 3, pela mão de Luís Marques, do sr. Rui Pêgo, um indivíduo "nado e criado" em rádios comerciais, a perversão era inevitável. E a publicidade a marcas e produtos não se fez esperar, entrando de rompante na estação pública, convenientemente disfarçada sob a capa de publicidade institucional. Desde filmes comerciais americanos que recebem o rótulo de "um filme Antena 1" a eventos desportivos e musicais associados a marcas e a empresas com fins lucrativos, tudo a rádio pública (sobretudo as Antena 1 e 3 – por vezes, também a Antena 2) tem publicitado sem a menor parcimónia. Refira-se, a título de exemplo, o filme "Toy Story 3", o Vodafone Rally de Portugal e o Festival Delta Tejo ("um festival Antena 1", pois claro). A promoção dada a este último, de tão intensa e desproporcionada que tem sido, é verdadeiramente obscena e atinge as raias do escândalo. Na verdade, o 'spot' com a voz de José Mariño a anunciar, em tom arrebatado, «o cartaz mais multicultural [?!] do Verão com os sons e os ritmos dos países produtores de café» (o Canadá de onde vem a Nelly Furtado é acaso um produtor de café?) tem passado com uma frequência tão elevada, de há duas ou três semanas para cá, que um ouvinte da
Antena 1, mesmo que só durante algumas horas (imagine-se o dia inteiro!), não pode deixar de se sentir mentalmente agredido com tão desmesurada repetição. O sr. Rui Pêgo terá sido acometido de uma paixão tão assolapada pelos Cafés Delta, que resolveu contemplá-los com uma campanha promocional graciosa? Na hipótese da marca de café do comendador Rui Nabeiro ser a predilecta do actual director de programas da rádio estatal, não acredito, sinceramente, que a sua benemerência fosse a tal ponto. Não, não é no café que reside a explicação para a massiva promoção ao Festival Delta Tejo 2011, mas numa coisa bem menos prosaica. Como é sabido, o evento é organizado pela empresa de espectáculos Música no Coração, pertencente ao genro de Cavaco Silva, Luís Montez, que por coincidência é também o proprietário do grupo de rádios Luso Canal (Radar, Oxigénio, Marginal, Rádio Nova, Rádio Nova Era, Rádio Festival, Rádio Amália, Rádio SW TMN). Nesta última, o Sr. Luís Montez já deu emprego ao filho de Rui Pêgo, Rui Maria Pêgo. E é claro: favor paga-se com favor. Além disso, uma operação de charme ao amigo Luís Montez (lembre-se que na Associação Portuguesa de Radiodifusão os lugares de presidente e de vice-presidente da Mesa da Assembleia-Geral são ocupados por Rui Pêgo e Luís Montez, respectivamente), nas ondas nacionais da Antena 1, pode revelar-se muito útil ao futuro profissional do próprio Rui Pêgo, pois um lugarzinho numa (ou em várias) das rádios de Luís Montez não é coisa de desperdiçar. Sabendo que a sua permanência na RDP não está garantida até à reforma, o sr. Rui Pêgo trata de acautelar o seu futuro. Que isso seja feito atropelando os mais elementares princípios éticos e gozando com a cara dos ouvintes/contribuintes que lhe pagam o sumptuoso salário, é de somenos importância, com certeza. E assim vai o "serviço público de rádio"...

14 junho 2011

"Musica Aeterna": um programa ao serviço do apostolado católico?

A Constituição da República Portuguesa consagra – e muito bem – o princípio da laicidade do Estado. Quer isto dizer que os órgãos de soberania (Presidência da República, Assembleia da República, Governo, Tribunais), bem como os organismos sob a sua tutela, não podem tomar partido por qualquer credo religioso professado no país (ou não), nem se envolverem em acções de proselitismo ou doutrinação. Ora foi exactamente o contrário disto o que se passou na estatal Antena 2, com o programa "Musica Aeterna" no qual, a pretexto do Pentecostes, uma solenidade do calendário litúrgico católico, foram lidos vários textos de teor marcadamente confessional e do estrito domínio da fé, uns extraídos da Bíblia católica (digo católica, porque a Bíblia protestante tem algumas diferenças – no menor número de livros e não só) e outros de literatura doutrinária patrística ou pontifícia, quiçá constantes no catecismo romano e/ou em encíclicas papais.
Sou ouvinte regular do "Musica Aeterna", que considero muito bom em termos de selecção musical (muito criteriosa) e também no tocante à locução de João Pedro (primorosa – não direi o mesmo de algumas outras vozes que, por vezes, lá aparecem), mas ao ouvir a emissão de sábado passado confesso que me senti violentado na minha liberdade de consciência (de livre-pensador). O autor do programa, João Chambers, é presumivelmente uma pessoa que professa o catolicismo e quanto a isso não há a mais pequena censura da minha parte. O que não posso aceitar é que utilize um programa musical pelo qual é remunerado com dinheiros públicos para fazer proselitismo da sua religião. Desta vez, o pretexto para a acção apostólica foi o Pentecostes. Qual será o próximo? – A Assunção da Virgem Maria aos céus? A Imaculada Conceição? As aparições de Lourdes ou de Fátima? A canonização de João Paulo II? – Não, isto não se pode tolerar numa estação pública e, como tal, laica e aconfessional. A Antena 2 não é a Rádio Renascença.
Sei muito bem que parte considerável da produção musical anterior ao Romantismo tem feição religiosa: católica nos países do Sul da Europa e protestante nos do Norte. Por acaso, duas das minhas obras predilectas de toda a História da Música têm cunho religioso. São elas: a "Paixão Segundo São Mateus", de Johann Sebastian Bach, e o "Requiem", de Mozart. Que se trate de obras religiosas (deste ou daquele credo) é-me completamente indiferente. A genialidade da música é única coisa que me importa. Nesta conformidade, toda a música sacra de qualidade (católica, luterana, anglicana, ortodoxa, etc.) que o Sr. João Chambers nos queira dar a ouvir é bem-vinda. O que jamais se poderá admitir é que, a pretexto desta ou daquela solenidade ou festividade católica (vale o mesmo para qualquer outra confissão), queira fazer do programa uma sessão de catequese.

09 junho 2011

"Lugar ao Sul" mutilado, não! (III)

Tenho-me esforçado para não voltar a "chover no molhado" relativamente às continuadas mutilações das gravações do "Lugar ao Sul", desde que o programa passou a ser emitido em reposição (finais de Janeiro de 2011). Na edição de sábado passado (dia 04 de Junho) a coisa foi feita de forma tão grosseira e chocante que a minha indignação subiu aos píncaros. Vi-me, por isso, obrigado a retomar o assunto.
Desta vez, não só mutilaram praticamente todos poemas da recolha de campo (noutras ocasiões alguns poemas ainda escapavam incólumes à "tesoura") como não tiveram o menor pejo em amputar as próprias músicas de disco escolhidas por Rafael Correia para o preâmbulo musical, agora não na totalidade nas em secções intermédias, o que causa uma indisfarçável sensação de desconforto a quem ouve. Aconteceu isto na moda "Trovoada" (em que eliminaram a parte correspondente ao verso "Mais tarde deu em chover" que é cantado duas vezes) e na moda "Rego abaixo, rego acima" (em que suprimiram a secção em que o Grupo Coral e Etnográfico "Os Camponeses de Pias" canta "Nem só com armas de guerra / Se defende uma nação").
Através da minha gravação caseira (pré-programada, pois gosto de ouvir o programa às 09:00 de sábado, continuando a cultivar um ritual com quase duas décadas) dei-me logo conta de que nos poemas (ditos pelo Sr. Joaquim Cruz, filho da vila alentejana de Cuba) havia versos em falta e que em certas passagens as rimas não batiam certo. Tudo isto acompanhado de ruídos estranhos e incomodativos... Ao reouvir o programa, aquando da preparação da "circular" com as letras das cantigas e os textos dos poemas que semanalmente expeço para os
Amigos do LUGAR AO SUL, vim a confirmar com mais pormenor e acuidade a impressão com que ficara da primeira audição. Uma autêntica barbaridade... Se é grave que as partes de diálogo sejam suprimidas, mais inaceitável ainda se afigura a truncagem (completamente arbitrária) dos poemas.
Não sei se é a sra. Cláudia Almeida que decide quais as partes dos registos originais a suprimir ou se deixa isso ao critério do técnico de montagem (que deve ser uma pessoa bastante inexperiente atendendo ao rasto de ruídos que deixa nos pontos de corte). Qualquer que seja o caso, o que foi feito é absolutamente intolerável e revoltante. Reitero o que escrevi anteriormente: o que está em causa é não apenas a adulteração, a todos os títulos inaceitável, dos registos de Rafael Correia, mas uma tremenda e insustentável desconsideração pelos ouvintes do programa que, com tais procedimentos, são tratados "abaixo de burro". «Para quem é, bacalhau basta!», deve dizer o sr. Rui Pêgo para os seus botões. Esquece-se, com certeza, que os ouvintes do "Lugar ao Sul", que tão pouca consideração lhe merecem, também contribuem para o opíparo salário que leva para casa no final de cada mês.
Os ouvintes do admirável programa de Rafael Correia voltam a clamar a quem de direito: «"Lugar ao Sul" mutilado, não!»


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01 junho 2011

A infância e a música portuguesa (III)

Terceira parte: Brincando, brincando... >>> aqui

27 maio 2011

Prémio José Afonso: uma tragicomédia grega


Joaquim Raposo & António Moreira, respectivamente, presidente da C.M. da Amadora e vereador do pelouro da Cultura

Com mais de dois anos de atraso, a Câmara Municipal da Amadora anunciou finalmente qual o disco distinguido com o Premio José Afonso referente à colheita discográfica de 2008. E o escolhido foi... "Chão", da Mafalda Veiga. Confrontada com a notícia, a cantora mostrou-se surpreendida (vide artigo do
Hardmúsica). O escrevente destas linhas comunga inteiramente de tal surpresa. Mais que surpresa: estupefacção e perplexidade. E porquê? Porque "Chão" está muito longe de ser um disco «cujos temas tenham como referência a Cultura e a História portuguesas, tal como a obra do autor de "Grândola, Vila Morena"» (nos termos do regulamento instituidor). Na verdade, o mais recente registo de Mafalda Veiga navega em águas muito diferentes – quase antagónicas – do legado estético de José Afonso e, se quisermos, da música popular portuguesa de raiz/inspiração tradicional, de que o autor de "Cantares do Andarilho" foi o grande percursor e impulsionador em Portugal. Mas mesmo que nos abstraíssemos deste requisito (coisa que não me parece razoável por deturpar o espírito e os objectivos de quem instituiu o Prémio), e quiséssemos considerar todos os discos de música portuguesa (fora da área erudita) lançados em 2008, ainda assim o CD "Chão" ficaria a perder para muitos outros álbuns. Tive oportunidade de dar realce a algumas dezenas no artigo "Grandes discos da música portuguesa: editados em 2008". O registo da Mafalda Veiga não figura nessa galeria de destaques e se tal aconteceu foi porque não encontrei nele suficientes motivos para o considerar um trabalho notável. Digo mais: "Chão" não acrescenta nada ao que Mafalda Veiga fez antes: no respeitante às letras, é mais do mesmo; relativamente à linguagem musical, nada de original, pecando inclusive por ser acentuadamente tributária do pop/rock anglo-americano (de toda a discografia da Mafalda Veiga, ressalvo dois títulos: "Pássaros do Sul", de 1987, com produção de Manuel Faria, e "A Cor da Fogueira", de 1996, com produção de José Sarmento).
Como se explica então que em face de tantas edições de qualidade superior, "Chão" tenha sido o seleccionado para receber os cinco mil euros do Prémio José Afonso? Só encontro uma explicação: a composição do júri. Dos cinco elementos inicialmente indigitados – António Moreira (vereador da Cultura da C.M. da Amadora), Vanda Santos (chefe de divisão da Cultura da mesma entidade), Olga Prats (pianista e professora de música), António Victorino d’Almeida (compositor e pianista) e Carlos Pinto Coelho (jornalista cultural) – apenas os três primeiros votaram. Carlos Pinto Coelho não se encontra entre nós – infelizmente – desde meados de Dezembro de 2010, e o maestro António Victorino d’Almeida tem decerto coisas mais importantes para fazer do que perder tempo com as negligências e incompetências de quem tem conduzido o processo do PJA. Dos três jurados votantes, dois – a maioria, portanto – são da Câmara Municipal da Amadora, o mesmo é dizer da entidade promotora do prémio. Que crédito pode ter um júri com tal composição? Nenhum, escusado será dizê-lo. Não tenho o (des)prazer de conhecer, pessoalmente, o sr. António Moreira nem a sra. Vanda Santos, mas quando, por sua obra e graça, o Prémio José Afonso serve para galardoar um disco como "Chão", tenho forçosamente de deduzir que a sua formação/gosto musical e os conhecimentos de música popular portuguesa não primam pela distinção, situando-se ao nível do vulgar e do corriqueiro. Será que aquelas duas criaturas conhecem e/ou apreciam a obra de José Afonso? Não me parece, sinceramente. É mais que provável que o grosso do repertório do imortal cantautor seja ignorado por tais orelhas. Devem, quanto muito, conhecer a "Grândola, Vila Morena" e mais uma meia-dúzia de temas, mas de os ouvirem na rádio e/ou na televisão...
Quanto a Olga Prats, uma Senhora que tenho na mais elevada estima e admiração, custa-me muito a crer que o seu disco preferido de 2008 (que não de música clássica) seja o "Chão", da Mafalda Veiga (o título é enganador pois o CD nada tem de telúrico, como facilmente poderá ser comprovado por quem o ouviu). A ter Olga Prats votado nele, de facto, foi porque não ouviu, com certeza, nenhum dos discos destacados no artigo "
Grandes discos da música portuguesa: editados em 2008". Se calhar, ouviu apenas uns quantos títulos menores que a C.M. da Amadora lhe forneceu e de entre esses, o da Mafalda Veiga era o menos medíocre. Bem, isto sou eu a conjecturar. Gostaria mais de acreditar que a eminente pianista votou, vencida, noutro álbum, esse sim mais conforme e consentâneo com a obra de José Afonso.
Em qualquer dos casos, pode afirmar-se com toda a legitimidade que o Prémio José Afonso sofreu, com esta recente decisão, um rude e violento golpe no seu prestígio e credibilidade. E os autores do crime chamam-se Joaquim Moreira Raposo (presidente da C.M. da Amadora) e António José da Silva Moreira (vereador do pelouro da Cultura). Não se tratasse de um problema suficientemente grave para a música e cultura portuguesas e não estivéssemos em presença do soez achincalhamento da memória de José Afonso, a coisa até daria para rir, de tão grotesca e caricata que é. Uma tragicomédia grega...


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17 fevereiro 2011

A infância e a música portuguesa (II)

Segunda parte: No reino das fadas e dos bichos >>> aqui

14 fevereiro 2011

"Lugar ao Sul" mutilado, não! (II)

Como não estou disposto a sacrificar o meu merecido descanso na madrugada de sábado por causa dos caprichos do sr. Rui Pêgo, a forma que arranjei de ouvir o "Lugar ao Sul" a horas decentes foi a gravação pré-programada. Assim, fico com o programa imediatamente disponível para audição sem necessidade de estar à espera que seja colocado online. Com tal expediente, posso dar-me ao luxo de começar o meu sábado às 09:00 com o "Lugar ao Sul", continuando a cumprir um ritual salutar (para a mente e para o corpo) de há muitos anos, mau grado os cortes das secções musicais e das conversas que vem sendo praticadas e contra as quais já tive oportunidade de me insurgir. A edição de sábado passado começou com uma interessantíssima conversa com o apicultor António Garrido (nas imediações da Barragem do Roxo, concelho de Aljustrel). Terminada a conversa que durou 27 minutos (quero acreditar que desta vez não mexeram na recolha e apenas suprimiram as secções de música de disco anteriores e posteriores àquela), surge em antena a sra. Cláudia Almeida a introduzir a gravação que se seguiria, dizendo que iríamos rumar até ao Museu de Silves, que se encontra instalado na alcáçova do castelo mouro. Após a observação parola e perfeitamente dispensável proferida pela citada Cláudia Almeida («Não desligue o rádio! É tudo o "Lugar ao Sul", de Rafael Correia...»), começa a ser transmitida uma das tais secções de música de disco com que o emérito realizador obsequiava o seu auditório em jeito de ilustração das conversas de campo. Amélia Muge, Brigada Victor Jara, GNR, Mler Ife Dada, Trovante e Luís Cília foram os artistas que desfilaram interpretando temas em que se alude a castelos velhos, a mouros (mouras) e a cerveja. Não é imediatamente apreensível a que propósito vem a cerveja, no contexto, sabendo-se que aquela bebida, tão apreciada por germânicos e anglo-saxões, não faz parte da tradição gastronómica mediterrânica e – não menos importante – que o Corão proíbe a ingestão de bebidas alcoólicas. A hipótese que me surgiu foi a de que a cerveja terá vindo à baila, na conversa que Rafael Correia manteve com o seu interlocutor, por qualquer outra razão totalmente alheia aos mouros que, há mais de sete séculos, residiram no castelo de Silves: talvez a realização, nos inícios dos anos 90 do séc. XX, de algum festival de cerveja no monumento. Bem, estava eu todo contente por desta vez não terem suprimido as músicas de disco e com o apetite aguçado para a conversa que se seguiria, que me daria a resposta para o repertório alusivo à cerveja, quando, logo depois do romance "D. Sancho", cantado por Luís Cília, surge novamente em antena a sra. Cláudia Almeida, com estas palavras: «"Lugar ao Sul", de Rafael Correia, de novo no ar com histórias de outros tempos e de um outro país. Mas, acima de tudo, a alma de um Senhor que constrói, com a conversa e o som em volta, a identidade de um povo. Daqui a uma semana, mais histórias do "Lugar ao Sul"». E o programa acabou. Eu nem queria acreditar no que estava a ouvir. Quer dizer: até agora apresentavam duas conversas (ainda que uma delas ou as duas sujeitas a amputações) e hoje, depois de uma conversa totalmente despida das músicas de disco que a envolviam, resolvem preencher o tempo que faltava para completar a emissão com o preâmbulo musical de uma outra conversa, mas sem a própria conversa!? É de bradar aos céus! É assim, com procedimentos mais próprios de curiosos e de amadores, que agora se trabalha na estação de rádio que devia ser uma referência e um exemplo de profissionalismo? A sra. Cláudia Almeida não tem, com certeza, a mais pequena noção das barbaridades que anda a fazer com o fabuloso acervo fonográfico de Rafael Correia. Por conseguinte, não será a ela que teremos de pedir as maiores responsabilidades, mas a quem tomou a decisão, leviana e irresponsável, de lhe atribuir uma função para a qual não está definitivamente talhada.
Os admiradores de Rafael Correia e todas as pessoas dotadas de sensibilidade para apreciar a sua arte de fazer rádio com os sons da terra voltam a clamar a quem de direito: «"Lugar ao Sul" mutilado, não!»


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31 janeiro 2011

"Lugar ao Sul" mutilado, não!

No texto anterior referi o procedimento incorrecto e indesejável que é a supressão da música de disco na reposição, recentemente iniciada, do programa "Lugar ao Sul". A audição da segunda emissão deu para perceber que a mutilação são se fica por aí: afecta também as gravações de campo. Achando a conversa com o frade António Maria, da Cartuxa de Évora, extremamente curta, disse para os meus botões: «Já?! Nunca uma conversa de Rafael Correia com os seus interlocutores durou tão pouco tempo.» Dei-me então ao cuidado de ir fazer a contagem do tempo e deu uns escassos 12 minutos. Não é possível! A minha experiência como ouvinte do programa diz-me que a conversas duravam, em média, 35 minutos. Nunca 12 minutos. Houve ali claramente uma amputação. Vendo bem as coisas, meter duas recolhas, com cerca de 35 minutos cada, num período de 50 minutos, só seria possível com cortes, se não em ambas as recolhas, pelo menos numa delas. Desta vez, a sacrificada foi a conversa na Cartuxa de Évora. E outras se seguirão inevitavelmente se se quiser continuar com a ideia peregrina de enfiar duas edições no tempo de uma só. Ora isto é totalmente inaceitável. Quem me garante a mim que a parte da conversa que foi suprimida não é tão ou mais importante que a que foi transmitida? Eu tenho a ideia de ouvir a referida emissão nos anos 90 e, se a memória me não atraiçoa, creio que se falou a dado passo de Aristóteles. Havia ali, portanto, matéria de relevante interesse que foi barbaramente sonegada ao auditório. Eu falo enquanto ouvinte, mas há que não esquecer a posição do autor. Será que Rafael Correia deu autorização para que os seus registos fossem mutilados, a bel-prazer de uma qualquer funcionária da RDP, que muito provavelmente não percebe patavina de antropologia ou de etnologia? Não acredito, sinceramente. Por conseguinte, estamos em presença de um acto flagrante de vandalismo cultural à obra de um autor. Algum pintor aceitaria que um conservador de museu pegasse num dos seus quadros e o recortasse, passando a expor apenas o bocado alegadamente mais agradável à vista e escondendo nas reservas a parte considerada menos interessante? Não! A obra vale como um todo e é assim que deve ser fruída pelo público. O criador é a única pessoa que tem legitimidade para retocar ou modificar a sua obra de arte. E digo "obra de arte" de propósito porque é efectivamente disso que se trata quando falamos do programa de Rafael Correia. Obra de arte radiofónica, bem entendido.
Posto isto, apelo a quem de direito no sentido do "Lugar ao Sul" deixar de ser mutilado. Os fiéis ouvintes do programa fazem questão de o saborear na íntegra (conversas e músicas) e não em forma condensada à maneira das Selecções do Reader's Digest. Apetece parafrasear Ary dos Santos: "Lugar ao Sul" castrado, não!

P.S.: Embora não sendo latinista, julgo que a expressão "Scala Coeli" ("Escada do Céu" ou "Escada Celeste") se pronuncia "Scala Celi" e não "Scala Coeli", como foi dito na nota introdutória pela sra. Cláudia Almeida. Enfim, mais um exemplo (a somar a tantos outros) da deficiente preparação cultural de parte do pessoal da R.T.P. (rádio e televisão) e da falta de rigor das cúpulas na sua admissão.
Já agora, uma pergunta: na empresa que todos financiamos para supostamente prestar serviço público não há controlo de qualidade dos programas pré-gravados? Pois é! Se houvesse, aquela calinada teria sido certamente detectada.

28 janeiro 2011

"Lugar ao Sul" regressa à Antena 1



«Se ele quisesse, se ele deixasse, a sua vida dava um filme. Mas hoje não é ainda o momento de contar a sua incrível história. Quero apenas reflectir como Provedor, a intensa admiração que os Ouvintes sentem por este devotado Homem da Rádio e, sobretudo, pelos exemplos que resultam dessa sua devoção.
Repito, por isso, o que já disse: "Lugar ao Sul", de Rafael Correia, é um Sinal de Excelência do Serviço Público de Radiodifusão.» (José Nuno Martins, Novembro de 2006)

«Há muitos anos, no jornal onde trabalhava ["Público"], escrevi um texto defendendo a obrigação da RTP de não apenas preservar a riqueza patrimonial de excepção representada pelos programas de Rafael Correia mas de a restituir aos portugueses, editando os programas numa colecção, como faz com os vídeos. A Radio France já organizou um disco com 39 faixas musicais, em 1999. Com o apoio da Antena 1 e presumo que de Rafael Correia. Mas não bastam os registos musicais. São precisas as quadras populares, as receitas, as conversas, o som ambiente.
Retomo este repto, agora como provedor e agora que "Lugar ao Sul" ameaça não voltar. Acho um crime de lesa-cultura se os programas forem deixados esquecidos e inúteis em pequenas cassetes DAT do arquivo histórico...» (Adelino Gomes, Julho de 2009)


Depois da saída de António Cardoso Pinto da direcção de programas da Antena 1, em 2003, o "Lugar ao Sul" foi sendo alvo de sucessivos ataques, desde a colocação em horários indignos a cortes no tempo de emissão. Por razões ainda não devidamente esclarecidas, Rafael Correia deixou de realizar o programa após o dia 1 de Agosto de 2009. Desde então, os ouvintes não mais deixaram de manifestar o desejo de que o "Lugar ao Sul" regressasse. Não havendo disponibilidade de Rafael Correia para voltar a colaborar com a rádio pública (fartou-se, muito possivelmente, de ser desconsiderado e maltratado), já seria muito bom que se repusessem em antena as edições menos recentes. O novo Provedor do Ouvinte, Prof. Mário Figueiredo, a exemplo dos seus antecessores, continuou a fazer-se eco dessa vontade dos ouvintes, o que faço questão de louvar. E o "Lugar ao Sul" começou finalmente, no sábado passado, a ser resgatado das teias de aranha do arquivo sonoro da RDP. O resgate, por si só, é motivo de regozijo para todas as pessoas que já sentiam saudades daqueles saborosos momentos de rádio com «as nossas coisas, as nossas gentes e o melhor da música de Portugal». No entanto, há três pontos a respeito dos quais os ouvintes querem manifestar a sua insatisfação.
O primeiro diz respeito à supressão da música de disco que Rafael Correia passava antes e depois das recolhas de campo. Aquela música não era ali colocada para "encher chouriços", já que estava tematicamente relacionada com o teor das conversas. Era parte integrante, portanto, do conceito do programa e não é aceitável que tenha sido suprimida. Além disso, e dada a marginalização de que a música tradicional tem sido objecto na Antena 1, aquelas secções de música tradicional/popular gravada funcionavam como uma das escassíssimas janelas para muito repertório de qualidade que nunca (ou muito raramente) vê a luz do éter nacional.
O segundo motivo de descontentamento é o horário em que o programa foi colocado: 07:00 da madrugada de sábado. Que Rui Pêgo nunca morreu de amores pelo "Lugar ao Sul" já todos sabíamos. Não tem é o direito de o sonegar aos muitos (potenciais) ouvintes para os quais aquele horário é de todo impraticável. O sr. Rui Pêgo devia saber que a audiência do programa não se restringe a padeiros e a transportadores de hortaliças para o Mercado da Ribeira (com o devido respeito por todas as pessoas que exercem essas actividades). Com efeito, o grosso dos ouvintes do programa é constituído por pessoas que entre as 7:00 e as 8:00 estão a dormir, recuperando de uma extenuante semana de trabalho. Calculo que o sr. Rui Pego, interpelado com esta questão, vá argumentar qualquer coisa do género: «Os ouvintes que não querem acordar à 07:00 de sábado tem sempre a alternativa do
streaming ou do podcast». Infelizmente, para uma parte significativa dos rádio-ouvintes (por via hertziana), a internet não é uma alternativa, seja porque a não têm, seja porque não têm disponibilidade de tempo para estarem agarrados a um computador durante todo o tempo de emissão, seja porque não têm (ou não sabem lidar com) um leitor de MP3. Por conseguinte, os ouvintes nessas condições (e não só) prometem não se calar enquanto ao "Lugar ao Sul" não for dado um horário digno e razoável na grelha da Antena 1. O horário anterior (depois das 09:00) era perfeitamente aceitável.
Por último, a questão da acessibilidade ao acervo do programa. Sem prejuízo da edição de CDs coleccionáveis (como sugeriu Adelino Gomes) não se compreende que o histórico, na sua totalidade, não esteja disponível numa página on-line. Já o disse antes, e volto a afirmá-lo: há que aproveitar a internet como plataforma de acesso aos acervos áudio de cariz cultural e histórico que estão à guarda de entidades estatais por todos quantos neles estiverem interessados. Afinal de contas, a produção, o arquivamento e a conservação de tais acervos fonográficos foi (é) feita com dinheiros públicos e, como tal, não se pode negar aos cidadãos a oportunidade de os fruir.


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