15 outubro 2010

Sobre o estado da Antena 2



Convidados pelo novo Provedor do Ouvinte, Mário Figueiredo, os anteriores ocupantes do cargo, José Nuno Martins e Adelino Gomes, disseram os que lhe aprouve acerca dos seus magistérios e sobre o estado actual da rádio pública. Cumpre-me comentar duas afirmações que José Nuno Martins proferiu na edição do programa "Em Nome do Ouvinte", de 08.10.2010:

1. «O actual poder político continua a desprezar a rádio (com todas as letras)».
Não podia estar mais de acordo. Tal acontece porque na cabeça nos políticos há a ideia de que a rádio (ao contrário da televisão) não os faz ganhar (nem perder) eleições. Esquecem-se da importância social e cultural que a rádio ainda tem na sociedade portuguesa, como José Nuno Martins bem chamou a atenção. E eu espero que essa importância não diminua, apesar da tendência inexorável que é a absorção da rádio (assim como da televisão) pela internet. A meu ver, a grande revolução na rádio dar-se-á quando a internet chegar aos auto-rádios, pois é no automóvel que a rádio é hoje mais ouvida. Quando isso acontecer – e não deve faltar muito – o leque de opções de escuta abrir-se-á imenso, mesmo considerando apenas as rádios feitas por portugueses (no território nacional ou não). Não mais os ouvintes automobilistas ficarão condicionados ao espectro muito limitado de estações hertzianas (de conteúdos musicais bastante parecidos) sintonizáveis na área onde circulam, podendo passar a ouvir toda e qualquer estação com emissão on-line. Essa será a grande prova de fogo para as rádios nacionais, acomodadas que estão no seu marasmo, por falta de alternativas ao alcance dos ouvintes automobilistas (que não seja o CD-áudio ou, eventualmente, ficheiros MP3).

2. «A Antena 2 – felizmente – mudou muito desde essa altura.» [quando José Nuno Martins cessou as funções de Provedor do Ouvinte].
Com o devido respeito por JNM, não subscrevo esta sua opinião. A que mudanças se refere em concreto José Nuno Martins? À alteração do horário do programa de música étnica "Raízes" que migrou da hora de almoço para depois da meia-noite? Não vejo mais nenhuma mudança e mesmo aquela não a posso considerar significativa, antes um pequeno ajuste na grelha sem mexer no essencial. Faz lembrar a célebre frase do escritor Tomasi di Lampedusa (no romance "O Leopardo"): «É preciso mudar alguma coisa para que tudo continue na mesma».
Os ataques à Antena 2 começaram em 2003, pela mão do administrador Luís Marques, e a grande machadada foi dada depois da saída do director de programas, João Pereira Bastos, em meados de 2005, quando mandaram às urtigas a grelha que ele havia delineado. De então para cá, a desqualificação do serviço prestado pela antena (supostamente) cultural tem-se mantido: continua a praga dos 'spots' e 'jingles' sucessivamente repetidos de hora a hora (às vezes menos), a pôr à prova a paciência e a sanidade mental dos ouvintes mais fiéis; continuam ao microfone as tais vozinhas com o seu português de trazer por casa, atabalhoado e repleto de erros de sintaxe e de prosódia; continua a não haver espaços culturais não musicais (poesia, ficção romanesca, História, Antropologia, artes plásticas, ciência, ciclos temáticos, etc.), em clamoroso incumprimento do estipulado no contrato de concessão do serviço público de radiodifusão; continua a passagem única de boa parte dos programas de autor, quando o mais elementar bom-senso recomenda que todos os programas de autor (que representam um investimento acrescido da estação e que como tal deve ser potenciado ao máximo) tenham duas transmissões em turnos distintos, de modo a ficarem acessíveis a públicos com disponibilidades de audição diferentes; continua a encomendar-se alguns desses programas a indivíduos que deixam muito a desejar, sabendo-se que em Portugal há pessoas muito mais bem preparadas nos assuntos abordados; continua a apostar-se em programas de música pop, logo de muito discutível interesse para a esmagadora maioria dos ouvintes da Antena 2; continua a insistir-se na ideia de que o melhor acompanhamento sonoro para a hora de jantar é, todos os dias, jazz (digo isto perfeitamente à vontade pois até gosto de algum jazz, mas dado que não ingiro todos os dias a mesma iguaria gastronómica, penso que auditivamente também devia ter uma ementa variada – em minha casa, quando se está à mesa, não se vê televisão: ouve-se rádio ou CDs); tirando os espaços consagrados ao jazz, à música electrónica de ambientes, à música pop, à música ética e à música contemporânea, continua a não haver um conceito de grelha/programação em que o ouvinte pudesse saber de antemão o que ouvir – música sacra, música coral profana, canção/lied, música coral-sinfónica, música sinfónica, música concertante, bailado e música de cena, música de câmara, instrumentos solistas, obras e/ou intérpretes portugueses, perfil de um autor, etc. – preferindo-se os espaços alargados de trechos de música indiferenciada escolhidos 'ad hoc', como se o público da Antena 2 fosse uma massa amorfa de gostos indistintos ("burros que comem toda a palha que se lhes der").
Ao contrário de outros ouvintes que evocam a antiga Lisboa 2, eu não o faço porque não sou desse tempo. Falta-me o conhecimento de causa para ajuizar com fundamento. Em todo o caso, quando se ouve registos da época (gravações de concertos e edições do programa "O Gosto pela Música") é facilmente constatável que havia um cuidado na locução e no uso da língua portuguesa que não existe actualmente na Antena 2 (não por faltarem no país pessoas cultas e com bom domínio da língua, mas por erros crassos na escolha/admissão do pessoal). Relativamente à oferta musical, creio que não me reveria por inteiro na antiga Lisboa 2, porque devia estar monopolizada pela produção dos períodos clássico, romântico, ultra-romântico, impressionista e neoclássico. A música antiga (barroca, maneirista, renascentista e medieval) devia ter um peso bastante residual – Bach, Haendel e pouco mais – e ainda por cima tocada por orquestras românticas, já que o movimento da nova música antiga iniciado na Europa Central e do Norte, nos anos 60, por Nikolaus Harnoncourt, Gustav Leonhardt, Frans Brüggen, Alfred Deller, Anner Bylsma, os irmãos Kuijken e pela Schola Cantorum Basiliensis (onde estudaram Jordi Savall, Montserrat Figueras, Hopkinson Smith e o nosso Manuel Morais) só chegaria a Portugal vinte e tal anos depois. Ouvir Bach ou Vivaldi à maneira de Herbert von Karajan é algo que hoje pouca gente suportaria.
O meu termo de comparação é com a Antena 2 do consulado de João Pereira Bastos. Era essa Antena 2 que me dava prazer ouvir e à qual devo muito do meu enriquecimento cultural (musical e não só). A actual Antena 2 mais do que não me proporcionar essa gratificação espiritual constitui uma fonte de desconforto auditivo. Ressalvo, naturalmente, alguns (poucos) programas de autor: "Teatro Imaginário" (de Eduardo Street), "Questões de Moral" (de Joel Costa), "Em Sintonia com António Cartaxo", "Musica Aeterna" (de João Chambers) e "A Força das Coisas" (de Luís Caetano). Em termos de escuta continuada, a Antena 2 gizada pela dupla Rui Pêgo/João Almeida é um produto impróprio para consumo.
Sei que muitos mais ouvintes partilham desta opinião e garanto que não são apenas os nostálgicos da antiga Lisboa 2.


Textos relacionados:
Evocações e programas culturais
Formas de poluição sonora na rádio pública
Antena 2: quando os spots promocionais de tornam um flagelo
Bach achincalhado na Antena 2
Promoção à RTP-1 na Antena 2
Antena 0,2: a arte que destoca
A 'macdonaldização' da Antena 2
Poesia na rádio (II)
Antena 2: zero euros para a aquisição de novos discos