23 fevereiro 2009

Filipa Pais: "Zeca"



No dia em que se completam 22 anos sobre o desaparecimento do trovador maior da música portuguesa, o blogue "A Nossa Rádio" rende-lhe esta singela homenagem, destacando a canção "Zeca", com música de Janita Salomé sobre poema de Hélia Correia, na voz cristalina de Filipa Pais.
Já agora, uma pequena nota. Apesar da importância imensa que teve (e continua a ter) para a nossa música e de nos ter legado um repertório extenso e de elevada qualidade, José Afonso apenas está representado na 'playlist' da Antena 1 com um único tema, "Venham Mais Cinco". Em contrapartida, constata-se que diversos nomes (cantores e grupos) de valia muito inferior (entre vivos e mortos) têm vários temas na referida 'playlist'. Isto deve ser motivo de reflexão por parte das entidades a quem compete avaliar e fiscalizar o serviço prestado pela rádio do Estado.



Zeca



Letra: Hélia Correia
Música: Janita Salomé
Intérprete: Filipa Pais* (in CD "L'Amar", Strauss, 1994)


[instrumental]

Quero falar-te e o coração, de comovido,
perde as palavras que juntara para ti.
Cantar-te sei e apenas isso faz sentido.
Menino de oiro,
vem sentar-te aqui!
Menino de oiro,
vem sentar-te aqui!

Por todo o ano é tempo de cantar janeiras.
Mulher da erva, inda agora a vi passar.
Por mar profundo, terra e todas as fronteiras
venham mais cinco
mil p'ra te saudar.
Venham mais cinco
mil p'ra te saudar.

Pode o Sol morrer de velho,
pode o gelo arder também,
mas a voz que de ti nasce
já não morre com ninguém.

[instrumental]

No céu cinzento, o astro mudo inda revela
um bater de asas, o disfarce do seu pé.
Bebem do sangue, comem tudo... olhai, cautela!
O que faz falta
já se sabe o que é.
O que faz falta
já se sabe o que é.

Junta-te a nós, ó bairro negro! vem, falua,
p'la noite fora até que se erga o sol de Verão!
Solta as amarras, sopra, ó vento! continua,
que este homem não
se foi embora, não!
Que este homem não
se foi embora, não!

Pode o Sol morrer de velho,
pode o gelo arder também,
mas a voz que de ti nasce
já não morre com ninguém.


* Filipa Pais – voz
João Paulo Esteves da Silva – piano
Mário Franco – contrabaixo
José Salgueiro – percussões
Jorge Reis – saxofone soprano
Rui Luís Pereira ("Dudas") – guitarras acústicas de 6 e 12 cordas

Quarteto de cordas Metrópolis:
Emília Vanguelova – 1.º violino
Mark Gundezman – 2.º violino
Valentim Petrov – violeta
Peter Flanagan – violoncelo

Arranjos e direcção musical – João Paulo Esteves da Silva
Produtor musical – Vitorino
Produtor executivo – Paulo Pulido Valente
Gravação e misturas – Fernando Abrantes
Assistente de gravação – Miguel Serra
URL: http://.myspace.com/filipapaismusic



Capa do CD "L'Amar", de Filipa Pais (Strauss, 1994)
Fotografia e grafismo – Rogério Taveira

Nota: Um outro belo e eloquente poema sobre José Afonso foi escrito por Natália Correia e pode ser lido/ouvido aqui.

20 fevereiro 2009

Poesia na rádio (II)

Tendo chegado ao fim, em 31 de Dezembro último, o apontamento de poesia e música "Os Sons Férteis", era expectável que 2009 começasse, na Antena 2, com uma nova rubrica de poesia. Mas não! Decorridos quase dois meses o vazio continua. E porquê? Eu presumo que o autor de "Os Sons Férteis", Paulo Rato, tenha avisado com bastante antecedência a direcção da Antena 2 de modo a que esta tivesse tempo para tomar as medidas que se impunham. Como se explica então tal inoperância e passividade? Bem, dada a razia de pessoal qualificado que se registou nos últimos anos (e de que a actual direcção de programas tem bastantes culpas no cartório, convém não esquecer), admito que nos actuais quadros da RDP não seja fácil encontrar alguém à altura de um Paulo Rato ou de um António Cardoso Pinto. Mas isso não é razão para que não haja um apontamento de poesia recitada na rádio pública. Duas saídas se ofereciam. Uma delas seria recorrer a 'diseurs' externos com provas dadas: estou a lembrar-me de actores da Cornucópia – Luís Miguel Cintra, Luís Lima Barreto, Luís Lucas, Luísa Cruz, Manuela de Freitas, etc. –, aliás, com diversos discos editados ("A Margem da Alegria", de Ruy Belo, e "Ao longe os barcos de flores: poesia portuguesa do século XX" são apenas dois bons exemplos). A outra alternativa (esta sem qualquer repercussão orçamental) seria fazer uso do património fonográfico existente. E aqui cabe não só o riquíssimo arquivo histórico da RDP (registos de Maria Clara, Carlos Acheman, António Cardoso Pinto, Graça Vasconcelos, Paulo Rato, etc.) mas também as edições discográficas disponíveis, seja de actores/recitadores de renome (além dos já citados: João Villaret, Mário Viegas, Jacinto Ramos, Eunice Muñoz, Carmen Dolores, Maria Barroso, Maria Germana Tânger, Maria Helena d'Eça Leal, Diogo Dória, Carlos Daniel, João Grosso, Santos Manuel, Vítor de Sousa, Natália Luiza, Maria Emília Correia, Afonso Dias, Mário Máximo, etc.), seja dos próprios poetas (Almada Negreiros, José Régio, Miguel Torga, Natália Correia, Herberto Hélder, Ary dos Santos, Mário Cesariny de Vasconcelos, David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Al Berto, José Manuel Mendes, Manuel Alegre, etc.). Nem sempre os poetas foram/são os melhores 'diseurs' da sua poesia, mas casos há em que ninguém melhor do que eles a disse (exemplos: Mário Cesariny de Vasconcelos e Eugénio de Andrade). E houve até poetas que emprestaram também a sua voz à obra alheia, como foi o caso de Ary dos Santos. Nunca mais me saiu da memória a sua admirável e tocante 'pregação' do célebre "Sermão de Santo António aos Peixes", do Padre António Vieira, que Judite Lima uma vez passou num dos seus programas (salvo erro, no "Jardim da Música").
Como ficou demonstrado, o que não falta é material de excepcional qualidade. E como escolher o poeta para cada emissão? Nada mais fácil e prático: a data de nascimento ou morte (no caso dos já desaparecidos). Creio que não deve haver um único dia do ano em que não tenha nascido ou morrido um poeta. Já o disse antes e volto a afirmá-lo: a rádio é de todos os media aquele que melhor serve a poesia, ainda mais que os próprios livros. Já dizia Federico García Lorca: "os poemas são feitos para serem recitados, porque num livro estão mortos". Não aproveitar a potencialidade única que a rádio tem no campo da poesia, além de ser uma atitude obscurantista é um crime contra a cultura.
Pergunta-se: porque é que a direcção da Antena 2 não mexeu uma palha durante este tempo todo? Será que Rui Pêgo e João Almeida entendem que a poesia não é realmente importante e necessária no serviço público de radiodifusão? É a impressão com que se fica. Para tais indivíduos a poesia parece ter muito menos importância que coisas do género "A Fuga da Arte" e "Vias de Facto"!...
É deveras confrangedor e triste ver como a Antena 2, de dia para dia, se vem afastando das obrigações culturais que são, afinal de contas, a razão da sua existência.
Apetece invocar a grande Natália Correia: "Ó subalimentados do sonho! / a poesia é para comer."


A DEFESA DO POETA



Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido coiro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de perdão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.


Poema de Natália Correia (in "A Mosca Iluminada", Colecção Poesia, vol. 3, Lisboa: Quadrante, 1972 – p. 44-45; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 443-444; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 330-331)
Recitado pela autora (in EP "Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria", col. A Voz e o Texto, Decca/VC, 1969; CD "A Defesa do Poeta", EMI-VC, 2003)

13 fevereiro 2009

Jorge Rodrigues regressa à rádio



Jorge Rodrigues, que durante cerca de onze anos realizou e apresentou, na Antena 2, o saudoso "Ritornello" está de regresso à rádio. A notícia seria óptima se a rádio em questão fosse a mesma de onde foi selvaticamente expulso, em Maio de 2007, pelo anterior vogal do conselho de administração Luís Marques, por recomendação da dupla de incompetentes Rui Pêgo/João Almeida, mas mesmo assim não deixa de ser um acontecimento que se saúda e que vem, sem dúvida alguma, ao encontro do desejo de muitos ouvintes.
O novo programa chama-se "
Esferas" e é emitido entre as 18 e as 20 horas pela CSB.Rádio, na frequência 105.4 FM, para a Grande Lisboa. As emissões estão ainda em fase experimental, estando prevista para breve a instalação de um novo emissor de modo a chegar aos locais ainda não cobertos.
Uma óptima alternativa, pois, aos programas que a Antena 0,2 tem para oferecer no mesmo espaço horário – o sensaborão "Baile de Máscaras" e o amadorístico e atabalhoado "Concerto Aberto" com as vozinhas imberbes que lá puseram.
Felizardos os que vivem ou circulam dentro do raio de acção da CSB.Rádio. Aos outros resta rezar ao Todo-Poderoso que faça o milagre de entregar os destinos do rádio pública a pessoas com outra preparação intelectual e cultural.