20 maio 2008

Prémio José Afonso (carta aberta)

Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal da Amadora,
Exmo. Sr. Vereador da Cultura,

Como é sabido, desde 2006 o Prémio José Afonso passou a reger-se por regras diferentes das que vinham sendo praticadas, sendo que deixou de haver uma lista de nomeados, elaborada por um colégio de três pessoas (o Sr. Júlio Murraças, funcionário da autarquia, e dois jornalistas especializados em música), entregando-se às editoras a prerrogativa de escolher os discos a sujeitar à consideração do júri. Ora, se com o anterior sistema de selecção havia a possibilidade de ocorrerem exclusões eventualmente injustas (voluntárias ou involuntárias), não é menos verdade que o critério que passou a ser adoptado tem imperfeições ainda mais relevantes, nas quais importa atentar. Uma delas é deixar nas mãos das editoras a indicação dos discos para a candidatura: em primeiro lugar, porque uma fatia considerável da edição de música de qualidade em Portugal já não passa pelas editoras, pelo menos pelas majors (desenvolverei este ponto mais adiante); em segundo lugar, pelo sério risco de os altos responsáveis das editoras não fazerem as escolhas mais justas e acertadas, não sendo também de descartar intuitos não artísticos (comerciais ou outros) que essas escolhas possam revestir. Aliás, isso ficou logo bem à vista em 2006 com aquela pobre lista que foi apresentada ao júri. Os jurados tomaram a decisão mais digna e acertada, ao não atribuirem o prémio a nenhum dos discos propostos, para não apoucar o prestígio do prémio e o nome do seu patrono, e também – atrevo-me a conjecturar – para dar um sinal à C.M. Amadora que aquele modo de candidatura não era o mais adequado. Como é possível que ao Prémio José Afonso sejam propostas coisas como Hands on Approach e Boite Zuleika? Em contrapartida, ficaram de fora – pasme-se! – os Madredeus ("Faluas do Tejo"), a Mariza ("Transparente"), a Cristina Branco ("Ulisses"), a Mafalda Arnauth ("Diário"), a Mísia ("Drama Box"), os Galandum Galundaina ("Modas I Anzonas"), os Roldana Folk ("Gincana"), os Mandrágora ("Mandrágora"), Bernardo Sassetti ("Ascent"), etc., entre ao quais havia com toda a certeza um álbum digno de receber o Prémio José Afonso (como se comprova nesta
petição). Uma tremenda injustiça, portanto, que foi cometida ao virtual vencedor e, mais latamente, à música popular portuguesa. Outro problema que pode ocorrer com o novo sistema é a não apreciação pelos jurados (por impossibilidade prática de ouvirem tudo o que é proposto) de discos com qualidade ainda que propostos a concurso, sobretudo primeiras obras, só porque os intérpretes eventualmente não lhes dizem nada. Neste caso, o soberbo "Parainfernália", o disco de estreia do grupo Diabo a Sete, com chancela da Açor/Emiliano Toste, corre o sério risco de nem sequer ser apreciado na edição deste ano de 2008. Isto partindo do princípio que a respectiva editora foi contactada e que o disco foi proposto. A este propósito, cabe perguntar: será que todas as editoras existentes em Portugal, designadamente as menos proeminentes e/ou não pertencentes à Associação Fonográfica Portuguesa, têm a efectiva oportunidade de apresentar as suas candidaturas? Não há editoras independentes, sobretudo as de menor visibilidade ou projecção no mercado, que ficam à margem do processo? E as edições de autor? Ficam todas de fora?
Tendo em conta todos estes aspectos, entendo que o concurso de candidatura ao Prémio José Afonso devia ser mais amplo e aberto (mediante a publicação de um anúncio na imprensa e também no site da C.M. Amadora), precisamente para dar igualdade de oportunidades à edição independente, incluindo a edição de autor, neste caso possibilitando que os intérpretes (a solo ou em grupo) não vinculados a editoras também concorram. Talvez não fosse viável (por manifesta falta de tempo) aos jurados ouvir todos os discos recebidos e aqui a assessoria de um ou dois consultores externos (críticos musicais ou melómanos reconhecidos) seria de grande utilidade para chamar a atenção para os trabalhos de maior relevância, não necessariamente dos nomes mais sonantes e mediáticos. E, se porventura, algum bom disco não tivesse sido candidato, por desatenção do artista ou por discriminação da editora, isso não quer dizer que o júri não o sujeitasse também à sua apreciação. Deste modo, o risco de injustiças seria fortemente minimizado, o que certamente agradaria ao seu patrono José Afonso. Isto enquanto não há em Portugal – falha grave – um regime de depósito legal para as edições discográficas, idêntico ao que existe para os livros. Se existisse, deixaria de ser necessário o processo burocrático de candidatura, bastando pegar na lista dos discos editados em cada ano, facultada pela entidade depositária (organismo equivalente à Biblioteca Nacional), e fazer a respectiva apreciação.
Desenvolvendo agora um ponto anteriormente enunciado, quero frisar a importância que, no actual panorama discográfico, adquiriu a edição independente – de pequenas editoras e de autor – por ser daí que provém a melhor música portuguesa editada nos últimos anos. Aquilo que as majors põem cá fora é, na sua esmagadora maioria, autêntico lixo (e curiosamente é isso o que mais passa na rádio, inclusive na estatal), circunstância agravada em face da pouca atenção que a edição independente merece da parte da imprensa e dos grandes circuitos de distribuição comercial. Da
colheita de 2007 (uma das melhores dos últimos anos) há cinco discos que, na minha opinião, mereciam ser distinguidos – "Parainfernália", dos Diabo a Sete (ed. Açor/Emiliano Toste); "Senhor Poeta", dos Frei Fado d’El Rei (ed. Ovação); "À Espera de Armandinho", de Pedro Jóia (ed. HM Música); "Não Sou Daqui", de Amélia Muge (ed. Vachier & Associados); e "Vinho dos Amantes", de Janita Salomé (ed. Som Livre) – e seria uma flagrante injustiça que algum deles ficasse de fora do lote de álbuns a apreciar pelo júri. Se dependesse de mim, atribuía o prémio aos cinco ex-aequo. Tanto mais que o Prémio José Afonso vale mais pelo prestígio do que pelo valor pecuniário (não estamos propriamente a falar do Prémio Nobel e mesmo à nossa dimensão caseira também não é comparável aos mais importantes prémios literários). Isto presumindo que o Prémio José Afonso se mantém na mesma ordem de grandeza (5 mil euros), logo muito aquém dos 100 mil euros do Prémio Camões e do recentemente criado Prémio LeYa.
Com os melhores cumprimentos,

Álvaro José Ferreira