13 outubro 2006

Antena 2: uma rádio à deriva

Exmo. Sr. Provedor do Ouvinte da Rádio Pública,

A grelha da Antena 2 agora em vigor tem vários pontos que não me satisfazem e, por isso, resolvi vir dizer de minha justiça ao Sr. Provedor. O exercício da crítica pressupõe dizer não só o que está mal mas também o que está bem e, nessa conformidade, começo por me congratular com o regresso às tardes de sábado do programa de Luís Caetano "A Força das Coisas", um espaço de que já sentia saudades. E também não escondo o meu agrado ao ver que o programa "Lugar ao Sul" foi alargado de meia para uma hora de duração, o que compensa de algum modo o tempo de emissão de que foi arbitrariamente amputado nas manhãs de sábado da Antena 1. Também registo uma notória melhoria no programa da manhã (agora intitulado "O Império dos Sentidos") sobretudo pelas escolhas musicais de Gabriela Canavilhas e igualmente por um maior profissionalismo na condução da emissão imprimido por Paulo Alves Guerra. Não obstante, penso que a locução precisa de ser aprimorada já que Paulo Alves Guerra, por exemplo, apesar de largos anos de trabalho na rádio peca por frequentes atropelos no tocante à dicção: oscilações na projecção de voz, acelerações bruscas, obliterações de sílabas, etc. (sobre o problema da locução em geral falarei mais adiante). Estas são as escassas medidas positivas que registo nesta grelha a qual apresenta múltiplos aspectos negativos, uns introduzidos em Janeiro e outros mais recentemente, e que passo a expor.
Em primeiro lugar, quero contestar de modo veemente o horário muito tardio – depois da meia-noite – a que alguns bons programas de autor são transmitidos, o que torna impraticável a sua audição por muitos interessados. Convenhamos que não é nada razoável que se obrigue quem tem de se levantar cedo no dia seguinte, para trabalhar ou estudar, a ficar de vigília até à 1 h da madrugada. É verdade que esses programas passam também às 14 horas, mas nem todos os ouvintes têm actividades que lhes permitam estar a ouvir rádio enquanto as exercem. E mesmo que determinadas actividades profissionais possam ser desempenhadas com um aparelho de rádio ao pé, temos de admitir que a atenção auditiva nessas circunstâncias nunca será a desejável para programas que solicitam um maior envolvimento do ouvinte do que a mera música de fundo. Assim sendo, eu proponho que os programas de autor que passam depois da meia-noite sejam colocados no espaço horário compreendido entre as 19 e as 24 horas. Pessoalmente, teria preferência pelo intervalo 20-21 horas, porque gosto de ouvir um bom programa de rádio à hora de jantar. Actualmente, este espaço horário é ocupado pelo programa "Jazz com Brancas", de José Duarte. Apesar de entender que o jazz tem cabimento numa rádio clássica, já me parece questionável o tratamento de privilégio que o género tem tido desde Janeiro do ano corrente. E duvido sinceramente que as audiências da Antena 2 registem um aumento digno de nota graças ao jazz. Talvez suceda precisamente o contrário já que o jazz é um género bem mais minoritário do que a música clássica/erudita e com muitos detractores entre o público tradicional da Antena 2, o que torna legítima a suposição de que os ouvintes que se ganham com o jazz talvez não cheguem para contrabalançar os que se perdem. Por outro lado, não me parece nada razoável que os programas de autor sejam preteridos a favor do jazz (ou de outra música) e por duas razões muito simples: primeira, os programas de autor representam um custo financeiro nada desprezível para o orçamento da RDP e, como tal, quando os mesmos são colocados em horários não acessíveis à generalidade dos ouvintes é o dinheiro desses ouvintes (e dos demais contribuintes) que está a ser desperdiçado; segunda, a Antena 2 deve ser algo mais do que uma emissora musical que passa música erudita, jazz e música étnica. Ao contrário do que acontece em alguns países europeus, na rádio pública portuguesa não existe um canal especificamente dedicado à cultura e, como tal, cabe à Antena 2 desempenhar esse papel. Ora na presente situação, é por de mais evidente que a Antena 2 não corresponde ao mínimo que seria desejável nesse capítulo. E não é só pela inadequação dos horários dos programas de autor de indiscutível interesse como "Questões de Moral", "O Ouvido de Maxwell" ou "A Propósito da Música". É também por não haver programas culturais de temática não musical: literatura, história, ciência, teatro, etc.. A exemplo do que fez na Antena 1, Rui Pêgo achou por bem também salpicar a grelha da Antena 2 com pequenas rubricas avulsas sobre música e outras áreas culturais. Devo dizer que acho a medida positiva, mas também digo que isso é claramente insuficiente e de pouca utilidade a quem não segue de forma continuada a emissão da Antena 2. Além do mais, essas rubricas funcionam, na sua maioria, como sugestões ou propostas de agenda da actividade cultural exterior à rádio, quando o que se pediria é que fosse a própria rádio a ter, ela mesma, cultura no seu seio – a rádio enquanto agente cultural. Neste âmbito, faço questão de apontar a honrosa excepção da rubrica de poesia e música "Os Sons Férteis", de Paulo Rato, para mim um exemplo paradigmático do serviço cultural que a rádio pública pode e deve prestar. Ainda a propósito de apontamentos e rubricas, sinto a falta no programa da manhã da crónica diária que chegou a contar com a colaboração de figuras como Isabel da Nóbrega, Helena Vaz da Silva, Maximiano Gonçalves, Teresa Rita Lopes e Vasco Graça Moura. Embora nem sempre estivesse de acordo com o que era dito nessas crónicas, elas tinham a vantagem de nos interpelar e de nos pôr a pensar sobre os mais diversos assuntos, alguns deles em que nunca atentaríamos de outra maneira. Voltando aos espaços culturais propriamente ditos, lamento profundamente que tenham desaparecido os programas evocativos e os ciclos temáticos sobre figuras e factos da História da Humanidade. Recentemente, foi para o ar um programa dedicado a Rembrandt, aliás muito bem feito, mas tratou-se de um acto isolado e sem continuidade. Todas as semanas, há uma efeméride (nascimento ou morte de uma personalidade, evento histórico, etc.) digna se ser tratada, pelo que não é por falta de assunto que tais programas não existem. Aliás, o arquivo histórico da RDP está repleto de material desse tipo e que não perdeu actualidade, o que torna ainda mais incompreensível ele não ser aproveitado, caso não se queira produzir novos programas. Neste capítulo, não posso deixar de fazer uma referência muito especial ao teatro radiofónico de que o arquivo histórico guarda autênticas preciosidades e que é um autêntico crime não serem dadas a conhecer ao público de hoje, passados que foram tantos anos sobre a sua produção e emissão. Aproveito para dizer que não gostei mesmo nada das duas ou três peças de produção recente que foram transmitidas este ano. Por princípio, não sou avesso ao experimentalismo mas confesso que os produtos que foram apresentados deixam muito a desejar não só em termos de formato e conteúdo como até no uso de linguagem obscena e imprópria para a rádio.
Analisando as alterações agora feitas à grelha que arrancou em Janeiro, fica bem evidente a desorientação e a falta de uma estratégia consistente para a Antena 2. Passo a explicitar: há programas que desaparecem decorridos apenas seis meses de vigência ("Café Plaza", "Paisagens", "Delta Blues", "Escrita em Dia"), outros mudam de nome ainda que o figurino e o conteúdo continuem os mesmos ("Amanhecer" para "Notas Soltas" e depois "Império dos Sentidos"; "Sarabanda" para "Folia"), a constante mudança de apresentadores de certos espaços musicais ("Raízes", "Até Bach", "Foyer Central") e, sobretudo, a incessante alteração de horários dos espaços musicais e dos programas de autor, isto para já não falar da suspensão inusitada que sofreram no Verão passado. Se um dos objectivos do canal é fidelizar ouvintes e criar hábitos de escuta, como é que explica esta constante deriva?
Acresce ainda que o serviço de locução tem registado uma crescente deterioração com a colocação aos microfones de pessoas que além de não terem timbre de voz adequado para a rádio ainda pecam por deficiente dicção e domínio da língua portuguesa. Não é locutor de rádio quem quer, assim como não é piloto de aviões quem quer. Não restam dúvidas de que quem decidiu pôr essas pessoas aos microfones ou não percebe nada de rádio ou então, se percebe, ignorou as regras básicas da profissão para fazer favores a amigos. E digo isto porque o Sr. João Almeida, com a complacência de Rui Pêgo, não teve o menor pejo em marginalizar ou pôr na prateleira alguns locutores detentores de vozes de qualidade e bons articulantes da nossa língua, para entregar a locução de continuidade e a apresentação de espaços musicais a três ou quatro apaniguados, diletantes e mal preparados, mas certamente mais dóceis e dispostos a cumprirem obedientemente todos os recados de que sejam incumbidos.
Por último, uma palavra sobre a colaboração externa. Eu sou um defensor da colaboração de autores exteriores à RDP desde que isso signifique uma mais valia para o serviço público e sempre que não haja profissionais no quadro da empresa com competência para realizar programas de relevante interesse cultural. Ora acontece que na actual grelha alguns colaboradores seriam totalmente dispensáveis pois não fazem nada que gente da casa não pudesse fazer, tão bem ou melhor que eles. Por exemplo, o espaço "Cantabile" podia perfeitamente ser realizado por Jorge Rodrigues ou por Teresa Ferreira de Almeida, dois bons conhecedores de música vocal. O mesmo se aplica aos programas "Prata da Casa", "Amadeus" e "Descobertas". O próprio "Jazz com Brancas" deixa muito a desejar pois José Duarte, apesar de ser uma sumidade no domínio do jazz, pouco mais faz do que dizer umas palavras de circunstância e a tocar CDs, nada que o Sr. João Almeida, por exemplo, não pudesse fazer. Muito melhor faz Manuel Jorge Veloso no seu "Um Toque de Jazz", esse sim um bom exemplo em que a colaboração externa constitui um enriquecimento do serviço prestado pelo canal. E qual o interesse para a Antena 2 de um programa como "Fuga da Arte"? A ideia de construir um programa com passagens de livros e música até podia ser interessante, mas a avaliar pelas emissões que tenho ouvido é bem evidente a inadequação entre a música seleccionada e um canal com o perfil da rádio clássica (se estivesse na Antena 1 ou Antena 3 já não teria nada a opor). Neste âmbito, tenho se contestar a presença cada vez mais frequente na Antena 2 de música pop, muitas vezes introduzida de forma despropositada e fora de contexto. Para ouvir música pop e de qualidade superior à que tenho ouvido na Antena 2 sei onde a posso encontrar e, como tal, parece-me descabido e falho de razoabilidade a difusão de música para a qual o canal não está vocacionado e que extravasa o seu estatuto editorial. Se o blues, mormente o mais genuíno, se podia aceitar no âmbito das músicas do mundo, já me parece que se está a pisar o risco quando se abre o leque a nomes como U2, Sting ou Abba (isto independentemente da qualidade que se lhes possa reconhecer). Querer fazer da Antena 2 uma rádio de todas as músicas e para todos os públicos constitui um erro crasso e radica num grande equívoco, pela simples razão de que é impossível satisfazer, ao mesmo tempo, o público da música erudita e os públicos acostumados aos produtos mais ligeiros e massificados. E quando se pretende agradar a gregos e a troianos, o mais provável é que não se agrade a ninguém. Por outro lado, quando se pretende colocar, no mesmo plano, a pop e a música erudita cai-se no ridículo e, no fim de contas, dá-se razão àqueles que acusam a Antena 2 de abastardamento. Eu não sou propriamente um purista da música clássica, mas pelo caminho que as coisas estão a levar temo que se resvale a breve prazo para algo do género «vale tudo até tirar olhos». Se é louvável o propósito de aumentar o número de ouvintes regulares da Antena 2, já me parece errada a estratégia adoptada para o conseguir. Em minha opinião, a angariação de novos ouvintes para a rádio clássica deve ser feita por outra via, essa sim com resultados mais consistentes e duradouros. Tudo começa por uma verdadeira política de educação musical no ensino básico e secundário, coisa que tem sido completamente descurada em Portugal, como é sabido. E quando o sistema de ensino falha cabe aos media corrigir esse défice, aproveitando a força e o poder que têm junto das massas. E aqui tem de se trazer à liça os canais generalistas da rádio portuguesa. Onde é que estão programas do tipo de um "Em Órbita" para abrirem os horizontes da dita música erudita a pessoas por princípio a ela alheias? Convém lembrar que boa parte dos actuais ouvintes da Antena 2 começaram por ser ouvintes do mítico programa de Jorge Gil, na Rádio Comercial, uma rádio do pop/rock (é bom não esquecer este pormenor). E o que é que os canais generalistas da rádio pública têm feito na promoção e divulgação da música clássica? Actualmente existe uma boa rubrica da autoria de António Cartaxo na Antena 1, o que se aplaude, mas faz falta um espaço de maior fôlego. Porque não se faz um programa, a incluir nas grelhas das Antenas 1 e 3, preenchido com obras e trechos mais acessíveis e de mais fácil agrado com especial incidência na música barroca por ser o estilo mais apelativo? Convém lembrar que muitos ouvintes sem formação musical formal foram conquistados para a música clássica precisamente com obras como: o Bolero, de Ravel; As Quatro Estações, de Vivaldi; Tocata e Fuga em ré menor, BWV 565, de Bach; Canon, de Pachelbel; Adágio, de Albinoni; Minueto, de Boccherini, Concerto de Aranjuez, de Joaquín Rodrigo; Sinfonia nº. 40, de Mozart; Quinta Sinfonia, de Beethoven; etc.. E já agora, por que razão a excelente rubrica de António Cartaxo não passa na Antena 3 de modo a proporcionar aos mais jovens, e de forma paulatina, a descoberta do vasto mundo da música clássica/erudita? Sem prejuízo de tudo isto, também acho que seria interessante haver na Antena 3, um programa dedicado a músicas do pop/rock inspiradas ou adaptadas de composições da música clássica e em que se fizesse o contraponto com as obras originais. Nomes como Procol Harum, Jethro Tull, Deep Purple, Frank Zappa, Electric Light Orchestra, Sting, entre outros, têm no seu repertório adaptações de obras dos grandes compositores sem que os próprios fãs, muitas vezes, tenham a noção disso. Seria mais uma janela que se abriria em muitas cabeças. Ainda com o intuito de cativar mais jovens para a Antena 2, não seria boa ideia incluir na Antena 3 pequenos apontamentos em que se daria um lamiré de obras potencialmente mais cativantes da programação diária da rádio clássica? É durante a juventude que há mais avidez por conhecer coisas novas e, desta maneira, estou em crer que se conquistariam, se não de imediato pelo menos a médio prazo, mais uns tantos ouvintes para a Antena 2. Há que lançar as sementes à terra agora quando ela está tenra e arável para que as árvores nasçam, cresçam e, por fim, dêem frutos.
Para terminar, não escondo a minha perplexidade com a decisão de colocar um programa de entrevista – "Quinta Essência" – no mesmo horário em que na Antena 1 passa justamente outro programa de entrevista – "1001 Escolhas". Eu até nem me importava de ouvir ambas as entrevistas, mas já que sou obrigado a optar será certamente o programa de Madalena Balça aquele que não vou perder.
E já que falei na Antena 1, aproveito o ensejo para exprimir o meu profundo desagrado pelo facto dos programas "Escrita em Dia" e "Viva a Música" terem deixado de ser repostos nas tardes de sábado, ao contrário do que continua a acontecer com o programa "Ondas Luisianas". Agora entre as 14 e as 17 horas de sábado, voltou a reinar a banal e corriqueira música de 'playlist', a mesma que passa a toda a hora na Antena 1. Em face disto, eu tenho de formular ao sr. Rui Pêgo a seguinte pergunta: a música de 'playlist' (ainda por cima de fraca qualidade) representa mais serviço público do que uma conversa à volta de livros ou do que a música portuguesa ao vivo?
Com os mais respeitosos cumprimentos,

Álvaro José Ferreira

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