21 abril 2006

"Vozes da Lusofonia": a conversa à volta dos discos


Realizado e apresentado por Edgar Canelas,
Vozes da Lusofonia é um programa dedicado à divulgação da música que se vai fazendo em Portugal e no mundo lusófono. Cada emissão conta com um artista (cantor, músico ou grupo) em estúdio para falar do seu trabalho e das músicas que vão passando. É na verdade um programa modelar de serviço público não só por proporcionar aos criadores musicais a divulgação das suas obras mas também por dar aos ouvintes a oportunidade de conhecerem os conteúdos dos discos que vão sendo lançados. E isto é importante que seja feito porque infelizmente as 'playlists' ignoram boa parte dos discos que se editam e dos que promovem apenas passam um ou dois temas. É de louvar que Edgar Canelas tenha a preocupação de contemplar todos os géneros, não esquecendo o fado e a música de raiz tradicional. Como quem define os conteúdos da "playlist" da Antena 1 persiste em ostracizar essas importantes áreas da nossa criação musical, o programa acaba por constituir um dos pouquíssimos espaços da nossa rádio que lhe dá guarida atenuando assim a sua incompreensível e injusta representatividade radiofónica. E digo incompreensível e injusta já que não corresponde à vontade de boa parte do auditório. Não tenho quaisquer dúvidas de que se as músicas de matriz tradicional tivessem outra presença nas rádios, seriam muito mais consumidas porque têm muitos apreciadores e cultores mesmo entre os jovens e jovens adultos porque é nesses segmentos do público que o fenómeno emergente da 'world music' tem mais entusiastas. Como só se ama e deseja o que se conhece, e as rádios continuam a fazer o jogo de poderosos 'lobbies', muitos vão continuando a consumir produtos musicais de efeito efémero e rapidamente descartáveis, mas que dão de comer a artistas medianos e fazem prosperar o negócio dos vários agentes do mercado discográfico – editoras, distribuidores, lojistas. Mas se a música a metro vende e faz render bom dinheiro, nada justifica que a música de maior quilate não possa ser também vendável e sem ser necessário adulterar a sua qualidade. As pessoas não são insensíveis à boa música, desde que lhes seja dada a oportunidade de a conhecer e apreciar. É tudo uma questão de boa promoção do que se produz e lança no mercado. Por alguma razão a pianista Maria João Pires, e sem fazer concessões ao mau gosto, já ocupou por mais de uma vez o primeiro lugar do top de vendas em Portugal. E se isto acontece na área da música clássica, por maioria de razão se pode verificar noutros géneros mais acessíveis ao grande público. Embora marginalizado numa dada altura, o fado conseguiu um novo fulgor graças a algumas boas vozes que, aproveitando os caminhos abertos pela grande Amália, se foram afirmando a ponto de já não puderem ser ignoradas. E tal como no fado há também uma grande vitalidade na música de raiz tradicional mas absurdamente quem dirige as principais rádios portuguesas arroga-se em não lhe dar eco. A propósito desta questão, gostei de ouvir o músico Luís Varatojo (do grupo A Naifa), a lamentar-se a Edgar Canelas do facto da música tradicional ter sido banida das rádios nacionais. Em Espanha, e em particular na Galiza, há uma atitude bem diferente: apesar de lá privilegiarem a produção autóctone, nem por isso deixam de dar atenção à música mais autêntica do lado de cá da fronteira. É vergonhoso, e revela bem o provincianismo e a falta de cultura dos responsáveis da nossa praça, que os portugueses José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fausto Bordalo Dias, Vitorino, Janita Salomé, Pedro Barroso, Júlio Pereira, Brigada Victor Jara, Ronda dos Quatro Caminhos, sem esquecer alguns excelentes grupos da nova geração que recriam a música tradicional, passem mais nas rádios galegas do que nas portuguesas.
Por tudo isto, só tenho que felicitar os radialistas como Edgar Canelas, pela atenção que prestam à melhor música lusófona, designadamente aquela que é criminosamente sonegada pela nossa rádio.

Nota: "Vozes da Lusofonia" passa na Antena 1, domingos às 09 horas e à meia-noite.

11 abril 2006

"O Amigo da Música": o fim de um bom programa da nossa rádio

No domingo passado, foi para o ar a última emissão do programa "O Amigo da Música", que José Nuno Martins vinha apresentando na Antena 1 há 81 semanas. O autor do programa, cuja indigitação para provedor do ouvinte teve parecer favorável do Conselho de Opinião da RDP, entendeu por bem sair de antena. É uma atitude muito digna e que faço questão de louvar, mas não escondo a minha pena por ver chegar ao fim um dos bons programas de autor da rádio portuguesa e de que era assíduo ouvinte. Embora não tenha apreciado uma ou outra opção de José Nuno Martins, isso não me impede de fazer um balanço globalmente muito positivo do seu trabalho. E digo isto por três boas razões: primeira, José Nuno Martins é incontestavelmente uma das figuras de proa da rádio portuguesa e talvez o maior conhecedor, entre nós, de música brasileira e latina em geral; segunda, um programa dedicado às músicas da latinidade, no actual panorama radiofónico monopolizado pela música comercial anglo-americana, é verdadeiro serviço público; terceira, "O Amigo da Música" havia conquistado a fidelidade de muitos ouvintes desiludidos com a rádio actual, facto que deve ser assinalado porque a desumanização trazida pelas 'playlists' levou inevitavelmente à quebra dos elos de identificação e cumplicidade que as pessoas tinham com ela.
Espero que a direcção da Antena 1 saiba preencher convenientemente o vazio deixado pelo fim (preferia chamar-lhe interregno) do programa de José Nuno Martins. Atendendo ao desequilibrado figurino até agora implementado nas 'playlists' da rádio pública, mais premente se torna ainda a existência de espaços em que possamos ouvir as músicas mais genuínas do mundo latino, sem esquecer as desta faixa ocidental da Ibéria.

07 abril 2006

Porque é que mataram o "Magazine"?



O "Magazine", que Anabela Mota Ribeiro vinha apresentando na RTP-2 desde Janeiro de 2004, acaba de ser extinto. Teve a mesma sorte do "Acontece!" só que mais prematuramente. Cumpre-me perguntar: porquê? Pouco me importa o nome do programa: "Magazine", "Acontece!" ou qualquer outro. Agora o que não posso aceitar é que no serviço público de televisão não exista um espaço dedicado à actualidade cultural. Não era o "Magazine" um programa que se enquadrava no conceito de serviço público? Ninguém minimamente sério e responsável se atreve a dizer que não. Admito que houvesse necessidade de ajustar o formato ou redefinir alguns conteúdos (por exemplo, na área da música), mas nunca a extinção pura e simples para passar a reinar o vazio. Com o desaparecimento do "Magazine" o serviço público de televisão ficou em pior situação que as televisões privadas que, embora a horas tardias, ainda apresentam um cartaz cultural semanal.
Estava à espera que com o novo director, Jorge Wemans, a RTP-2 pudesse recuperar alguma da qualidade que perdeu com a reestruturação ocorrida em Janeiro de 2004. Mas agora verifico que estava enganado. E a degradação não se fica pela abolição do "Magazine". Um dos grandes erros da direcção de Manuel Falcão foi preferir as séries americanas ao cinema de qualidade: séries todos os dias e apenas um filme por semana. Agora, em vez de uma, temos duas séries por dia (algumas em reposição) e a penúria de cinema continua a mesma. É pertinente a pergunta: as séries americanas têm mais valor cultural do que o cinema europeu e os grandes clássicos do cinema norte-americano? O que fizeram aos mestres da sétima arte como Bergman, Antonioni, Fellini, Visconti, Buñuel, Jean Renoir, Truffaut, Murnau, Fritz Lang, John Ford, Orson Welles ou Hitchcock? Não digo que não haja uma ou outra série de qualidade como "Roma" ou "Sete Palmos de Terra", mas ocupar o horário nobre do canal cultural da televisão pública todos os dias com infindáveis ruminações de já visto parece-me um flagrante desvio do serviço público e um desperdício do dinheiro dos contribuintes. O que se está a passar é ainda mais bizarro atendendo a que foi o próprio ministro da tutela, Augusto Santos Silva, quando entrevistado por Jorge Rodrigues no programa "Ritornello" da Antena 2, que declarou o seu empenho numa RTP-2 vocacionada para uma programação cultural de excelência.
Quem é que beneficia com tudo isto? O cabo, pois claro! Quem não pode assinar o cabo, fica com as telenovelas, os concursos e os enlatados americanos. E depois venham queixar-se que o povo não tem cultura!

Evocando as grandes figuras da rádio portuguesa

Já aqui aludi várias vezes a essa grande chaga que aflige a rádio actual: a ditadura das 'playlists' e o criminoso afastamento de tantos homens e mulheres que fizeram o imaginário da rádio. Francisco Mateus, no blogue "Rádio Crítica" ('posts' Paradeiros e O Que é Feito Deles? - continuação) teve a luminosa ideia de fazer uma galeria dos nomes que marcaram a rádio portuguesa nas últimas décadas. Foi com nostalgia que recordei alguns desses nomes que acompanharam o meu crescimento e que foram importantes na formação do meu gosto e sensibilidade. Evoco muito especialmente Graça Vasconcelos (afastada da RDP em Outubro de 2005) que com o seu distintíssimo "Imaginário", nas noites da Antena 1, me acompanhou nas horas de estudo sobretudo em vésperas de testes e exames. Evoco também com saudade Pedro Albergaria que me revelou grandes nomes da música popular anglo-americana dos anos 60 e 70 com o seu extraordinário "Viva o Velho" e Jorge Gil que com o clássico "Em Órbita" me conquistou para a música antiga. Dos que estão no activo permito-me acrescentar duas referências da Antena 1: Armando Carvalheda que há dez anos vem apresentado o "Viva a Música" e Rafael Correia autor do "Lugar ao Sul", actualmente o segundo programa de maior longevidade da rádio portuguesa (o primeiro é "Cinco Minutos de Jazz", de José Duarte).

"Questões de Moral"

Escrito e realizado por Joel Costa, "Questões de Moral", na Antena 2, é um dos meus programas de rádio imperdíveis. Fazia tenção de falar sobre ele um destes dias, mas Francisco Mateus tirou-me as palavras da boca. Recomendo pois a leitura do seu eloquente texto no blogue Rádio Crítica.

03 abril 2006

Mário Viegas: 10 anos de saudade



Não parece mas já passaram dez anos desde o 1 de Abril de 1996, dia em que Mário Viegas pregou a suprema partida de nos privar da sua irreverente e proveitosa companhia. Foram muitos – eu incluído – os que descobriram a beleza e o fascínio das palavras ditas pela voz magistral de Mário Viegas. "O Manifesto Anti-Dantas" foi a primeira coisa que ouvi da sua boca e foi tal a impressão que me causou que ainda hoje fico arrepiado sempre que ouço essa peça. E quando tive a oportunidade de a ouvir pelo próprio Almada Negreiros é que fiquei com a noção mais nítida da sublime arte de Mário Viegas já que superara o autor. Por tudo isso é da mais elementar justiça endereçar-lhe daqui um sincero agradecimento lá para o lugar etéreo de onde risonhamente nos observa.
Perdemos o homem, ficou a obra e a grata memória que deixou em todos aqueles que tiveram o privilégio de comungar da sua arte. Para a posteridade fica o seu legado que não é de pouca monta pois, além da documentação que doou ao Museu do Teatro, dele faz parte um rico e precioso acervo de poesia recitada. Parte desse espólio de gravações pertence ao arquivo histórico da RDP e, como tal, cumpre-me aplaudir a direcção da Antena 1 por ter assinalado a efeméride com a transmissão de uma série de poemas ditos pelo grande recitador, de hora a hora logo a seguir ao noticiário. No dia das mentiras foi uma barriga cheia de poesia porque além da oportuna evocação de Mário Viegas, Francisco José Viegas teve também a louvável ideia de preencher o seu "Escrita em Dia" com o recital de poesia de vários autores que teve lugar na Casa Fernando Pessoa no Dia Mundial da Poesia. Dada a míngua de poesia de que a rádio pública tem padecido é caso para dizer que a fome deu em fartura. Mas receio bem que esta súbita abundância tenha sido circunstancial e que a penúria volte a ser a ordem do dia. Não vou ao ponto de pedir que doravante haja poesia a cada hora que passa, mas já me contentava com a transmissão de um poema três ou quatro vezes por dia e nos vários canais da RDP, a exemplo do que tem acontecido – e muito bem – com algumas rubricas da Antena 1. Penso que não é pedir muito e não será certamente por falta de material no arquivo histórico que isso não é feito.

Nota: A poesia recitada por Mário Viegas fica agora mais acessível aos interessados graças à colecção de livros/CD que o jornal "Público" começou a distribuir.


O PORTUGAL FUTURO



O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro


Poema de Ruy Belo (in "Homem de Palavra(s)", col. Cadernos de Poesia, vol. 9, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969, Lisboa: Editorial Presença, 1997)
Recitado por Mário Viegas (in LP/CD "Poemas de Bibe: grande poesia portuguesa escolhida para os mais pequenos", UPAV, 1990)